Num mundo em constante mudança em que a produção do conhecimento e a inovação são indiscutivelmente necessárias para a construção de uma sociedade diferente daquela que conhecemos, o desenvolvimento pleno do potencial dos mais novos afigura-se de extrema importância. O primeiro passo só pode ser dado quando aceitarmos verdadeiramente as diferenças interpessoais, respeitando-as e promovendo-as. Os locais privilegiados para essa promoção são, indiscutivelmente, os múltiplos contextos educacionais que, face à cada vez mais premente necessidade de diferenciação pedagógica,se vêem obrigados a uma mudança de paradigma em termos de avaliação e de intervenção.
Esse novo paradigma opõe-se à visão estática do "nós versus eles" e obriga a perspectivar a diferença como uma interacção dinâmica, sistémica e dialéctica entre as características pessoais e as características do meio envolvente. Consequentemente, uma intervenção educacional promotora do pleno desenvolvimento do potencial cognitivo exige uma avaliação abrangente e dinâmica das múltiplas dimensões que confluem no desenvolvimento pessoal: motora, perceptiva, cognitiva, sócio-emocional,
moral, comportamental e, exige também a integração desses dados num quadro de referência teórica eclético.
1. Preâmbulo para enquadrar o conceito de diferença
Cada sala de aula é diferente. Diferente porque é constituída por pessoas diferentes. Diferentes em termos de idade, pelo menos de quase um ano de diferença entre o aluno mais novo e o mais velho. Diferentes em termos físicos, desde a cor do cabelo até aos 50 cm de diferença entre o adolescente mais baixo e o mais alto de uma turma do 8º ano, passando pelos traços fisionómicos, herança dos seus antepassados.
Diferentes porque têm experiências de vida diferentes, têm com pano de fundo contextos culturais diversos, provêm de "nichos ecológicos" (Bronfenbrenner, 1989) variados, possuem hábitos diferentes, adormece(ra)m ouvindo lendas de diversos pontos do mundo e aprende(ra)m a dançar ao som de ritmos específicos vários. Diferentes porque apresentam ritmos e estilos de aprendizagem diferentes e trazem para a sala de aula conhecimentos sobre temas diferentes com níveis diferentes de profundidade.
Em comum têm o facto de frequentarem a mesma escola, de serem ensinados pelos mesmos professores, de aprenderem noutros contextos que não se cingem à escola e de lhes ser pedido para cumprirem os mesmos objectivos educativos como garante de uma vida adulta equilibrada. Para uns essa tarefa não exige grande esforço, mas para outros, talvez a maioria, esta tarefa é difícil de realizar. Pura e simplesmente não a conseguem cumprir por serem diferentes: uns porque não apresentam os requisitos necessários para a cumprir; outros porque, embora possuindo esses requisitos, não se sentem realizados com o seu cumprimento, querendo mais do que aquilo que lhes é dado. Mas a questão não é tão simplista
quanto isso, não é uma mera questão de se ter ou não ter. É, antes, uma questão de ser ou não ser aceitante da diferença. Ou mesmo mais do que meramente aceitar, de a valorizar.
A promoção da diferença está na ordem do dia nos vários contextos sociais em que nos movemos. Cada vez mais os bairros onde vivemos, os locais onde trabalhamos e as ruas por onde andamos estão repletos de pessoas que são diferentes de nós pelo corte do cabelo ou pela cor da pele, pelos hábitos sociais que assumem, pelas ideias em que acreditam, pelos valores que defendem. Saber estar com os outros, mantendo a identidade pessoal e, não obstante, respeitar a identidade do outro, é cada vez mais fundamental face às grandes mudanças em que vivemos: a pluralidade é um "bem" que bem devemos passar a incluir nas nossas experiências de vida.
2. A questão das oportunidades educativas para todos
Um dos panos de fundo da promoção da diferença é a questão das oportunidades que, enquanto sociedade, oferecemos às pessoas que são excelentes num ou em vários domínios do conhecimento. Neste sentido, o estudo e a intervenção na sobredotação e nos talentos são fundamentais.
Estimular talentos é fundamentalmente capacitar a pessoa que apresenta excelência em determinada área com as competências necessárias ao seu desenvolvimento pessoal: por um lado, proporcionando-lhe as competências sociais para poder partilhar o seu talento com os outros e para que este seja reconhecido e valorizado; por outro lado, abrir-lhe os horizontes para outros domínios do conhecimento em que a sua área de excelência possibilite a confluência de saberes.
É precisamente uma confluência de saberes que tem permitido teóricos e investigadores em todo o mundo clarificar o que é a sobredotação. Esta já tende a ser definida como elevadas capacidades cognitivas e elevados desempenhos numa ou mais áreas (Almeida & Oliveira, 2000; Pereira, 2001). A sobredotação passou a ser alargada não só às áreas intelectuais e académicas a que foi durante décadas confinada, mas também a outras áreas da expressão e da realização humana, temáticas muito presentes nas novas concepções de inteligência.
Uma forma inovadora de olhar a inteligência é equacioná-la em termos da sua aplicação prática. A recente discussão em torno do conceito de inteligência prática (Sternberg, Forsythe, Hedlund, Horvath, Wagner, Williams, Snook & Grigorenko, 2000) permite-nos compreender de uma forma mais esclarecedora como algumas pessoas conseguem inteligentemente ter sucesso escolhendo um ambiente em que tal sucesso possa florescer, adaptando-se a esse meio e moldando-o, se necessário. A cultura é assim vista como o
principal factor na definição dessa escolha, e da subsequente adaptação e modelagem com sucesso. As pessoas bem sucedidas procuram situações em que as suas capacidades serão valorizadas, trabalham arduamente para capitalizar essas capacidades e compensar qualquer ponto mais fraco (Sternberg, Wagner, Williams & Horvath, 1995). Em última análise, o conceito de inteligência prática pode abrir os nossos horizontes relativamente às ideias que temos sobre a sobredotação, desafiando o aprofundamento desta área de estudo.
Em termos teóricos e em primeiro lugar, o estudo da sobredotação permite-nos de uma forma mais privilegiada saber mais sobre o nosso funcionamento cognitivo, nomeadamente sobre aquilo a que chamamos inteligência, memória, os processos cognitivos e estratégias de aprendizagem. Permite-nos compreender melhor o funcionamento humano. Poderá mesmo fazer incidir uma nova luz sobre a questão da quantidade versus qualidade no seio da psicologia cognitiva e do desenvolvimento. Esclarecer se saber
muito significa saber mais, saber melhor, ou ambos. Quer as diferenças entre os sobredotados e os não tão dotados, quer as diferenças individuais entre os sobredotados podem ser analisadas em termos quantitativos como o prefixo "sobre" indicia, e, talvez de uma forma mais enriquecedora, em termos qualitativos, o que, como refere Eckhaus (1996), significa perspectivar essa(s) diferença(s) como um "jogo de orquestração" entre percepções, cognições, afectos, atitudes, crenças, motivações, valores, conhecimento(s).
Em segundo lugar, já pensando em termos mais "práticos", o investimento na sobredotação é uma questão de não nos podermos "dar ao luxo" de desperdiçar talentos. Segundo alguns autores (e.g. Moltzen, 1996, Schunk, 1990) cerca de 20% dos alunos sobredotados abandona a escola e entre 10% e 20% não chega a concluir uma licenciatura. Outros autores (e.g. Esgalhado, 2001, Simões, 2001) salientam a necessidade de uma reflexão sobre os alunos com características de sobredotação que apresentam dificuldades de aprendizagem e um autoconceito diminuto, tendo em vista a implementação de uma intervenção que lhes permita um envolvimento pleno em tarefas académicas desafiantes e significativas. É preciso desenvolver o talento para que ele não se perca, pois um talento não reconhecido é um talento negado (Guenther,2000).
É uma questão de criar verdadeiras oportunidades educativas para todos e de potenciar a produção de futuras inovações em todos os domínios do conhecimento. Se Bach ou Mozart não tivessem tido acesso a um piano durante as suas infâncias ou se Louis Amstrong não tivesse tido acesso a um trompete enquanto frequentou um reformatório em adolescente, o mundo da música teria com toda a certeza ficado mais pobre. É também uma questão de olharmos para o reverso da medalha: não só compreender o que as artes e as ciências nos podem oferecer mas também em que medida podemos dar algo ao campo da arte e da ciência. Isto é, a arte pode ficar mais rica com o público (Fernandes & Vidasinha, 2001), no sentido
da interacção enriquecedora tanto para o público que "ganha" com a arte, com para a própria arte que "ganha" com aquilo que a sua apreciação pode dar.
Ambas as faces da moeda implicam um processo de enriquecimento mútuo que parece ser, ao fim ao cabo, uma atitude pouco aceite pelo nosso imaginário colectivo: para além de sabermos o que o outro pode beneficiar connosco na nossa qualidade de educadores, devemos também passar a compreender o que é que podemos aprender com os outros. Ou
seja, a questão do respeito pelo outro passa necessariamente pela percepção de que todos os intervenientes no processo educativo se podem enriquecer nas trocas que caracterizam a sua interacção. Independentemente dos motivos mais políticos que éticos que levaram alguns Norte-Americanos a interessarem-se pelo estudo da sobredotação nas últimas décadas, para fazer face ao Sputnik soviético, o aprofundamento do tema da sobredotação merece todo o nosso respeito e ajuda-nos a compreender melhor esta questão do respeito mútuo e da necessidade de criar verdadeiras oportunidades de crescimento pessoal para todos.
Em terceiro lugar, é a necessidade que temos de promover a diferença, numa sociedade ainda demasiado tolerante e pouco aceitante, mas que só pode subsistir se respeitar a diferença que nega. É-nos difícil aceitarmos a diferença "para melhor" porque nos é difícil aceitar as nossas limitações enquanto pessoas e procurar formas de as ultrapassar.
A insegurança continua a ser uma constante talvez porque tenhamos na nossa mente uma série de mitos que desde sempre nos têm perseguido sobre conceitos como a sobredotação, a genialidade, o prodígio, a excelência, a loucura. O medo do sucesso (Horner, 1968) ou do fracasso podem também constituir factores responsáveis pela não-aceitação da excelência.
3. Os múltiplos olhares sobre os talentos
Mas afinal qual a diferença entre sobredotação e talento? A diferença é subtil e também polémica. Para alguns autores (e.g. Alencar, 1986) talento significa uma aptidão ou um desempenho acima da média num domínio específico. As vantagens da adopção deste termo são, por um lado, o facto de ter uma maior aceitação social, retirando as conotações negativas do prefixo "sobre" e, por outro, o facto de ser mais consonante com o conceito de inteligências múltiplas (Pereira, 2000). Porém Gagné (1985) salienta a presença de uma maior ênfase na motivação quando falamos em talento. Essa motivação transformaria a sobredotação em talento, ou seja, o talento implica a sobredotação e a sua subsequente expressão. Como refere Pereira (2000) o talento é o patamar que se segue à sobredotação, na medida em que exige a sua expressão. É este o sentido do termo talento neste contexto: sobrepõe-se à sobredotação no sentido em que uma das funções prioritárias da escola deve ser a de desenvolver os potenciais talentos, permitindo que o "dote" "a mais" seja expresso. O conceito grego de "enteléquia", que significa autodeterminação, pode proporcionar um novo prisma para olhar a sobredotação e a sua subsequente expressão em talento.
Segundo Aristóteles, enteléquia é o resultado ou a plenitude de uma transformação ou de uma criação. Ou seja, a expressão de um talento.
O problema da expressão da sobredotação enraíza-se nos múltiplos quadros de referência teóricos sobre a aprendizagem, o desenvolvimento e a inteligência. Cada enquadramento teórico pode ser visto como um prisma através do qual podemos olhar o panorama da sobredotação e do talento. Se bem que o estudo do desenvolvimento humano tenha esclarecido muitas ideias acerca do que se desenvolve ao longo da vida, os teóricos continuam a debater muitos conceitos fundamentais para a compreensão do processo de
desenvolvimento humano (e.g. Seifert, Hoffnung & Hoffnung, 1997; Vander Zanden, 1993). A questão da existência ou não de invariantes independentes do contexto cultural, ou seja, da universalidade versus contextualidade do desenvolvimento humano continua por esclarecer, pois diversas investigações e reflexões apoiam um e outro pólo deste debate.
A questão da continuidade versus a descontinuidade tem gerado opiniões díspares, sendo muitos teóricos do processamento da informação representantes de um dos lados e os teóricos inspiração piagetiana e vygotskyana mais consonantes com o lado oposto. Mas talvez a questão mais espinhosa seja mesmo a da existência de um domínio geral do desenvolvimento ou a de vários domínios específicos independentes e que constitui(u) igualmente um motivo de debate aceso no domínio do estudo da inteligência. Porém, a questão que se assume mais central para a nossa compreensão da sobredotação e do talento é a questão de saber se há um domínio geral do desenvolvimento, ou, pelo contrário, se existe uma especificidade de domínios.
Tomando como prisma de reflexão a existência de uma estrutura geral de desenvolvimento apoiado por autores como Piaget, Bruner, Case ou Siegler - ou de uma estrutura mais geral de inteligência apontada por teóricos como Binet, Spearman, Weschler e, mais recentemente, Sternberg, com o conceito de inteligência prática tendemos mais a interpretar a sobredotação como uma qualidade cognitiva mais geral, não negligenciando também os aspectos relativos a outras variáveis, como as sócio-contextuais, de personalidade, motivacionais e de autoregulação do comportamento, e, a intervir no desenvolvimento pleno dos vários domínios da cognição e do desenvolvimento.
Assumindo um outro prisma, o da existência de vários domínios específicos do desenvolvimento como defendem Chi, Keil ou Carey ou a presença de vários factores específicos da inteligência Thurstone; de um modelo multidimensional da estrutura da inteligência - Guilford; ou de várias inteligências múltiplas, mais ou menos independentes umas das outras Gardner, o reconhecimento da sobredotação passa a ser mais abrangente e mais aceitante da diversidade, e a importância dos aspectos do conteúdo da inteligência mais realçada. Olhando por este prisma, o primeiro enquadramento do termo "talento" é salientado e a intervenção tem como base o enriquecimento de áreas mais específicas, embora não negligenciando as áreas mais fracas.
No entanto, um outro prisma através do qual se pode olhar a sobredotação não se refere tanto aos conteúdos presentes nas diferentes manifestações da inteligência e dos talentos, mas antes aos processos com base nos quais tratamos a informação com que nos deparamos ao longo da vida. As abordagens recentes, de cariz cognitivo e metacognitivo, à inteligência salientam a presença dos processos de codificação na identificação e na recuperação da memória a longo prazo de qualquer tipo de informação que possa ser relevante; dos processos de inferência de relações entre informações, ou seja, o recurso a processos de ordem superior; e, ainda, dos processos de aplicação da informação trabalhada,
no modo como resolvemos problemas no nosso dia a dia e no modo como lidamos com a informação (Sternberg,1985).
As pessoas que resolvem problemas de uma forma mais eficaz não são necessariamente as mais rápidas, mas antes as que passam mais tempo na codificação do problema (Sternberg, idem), ou seja, aquelas que analisam a informação relevante que pode ser necessária para a futura resolução do problema nas fases posteriores do processo de tratamento de informação. Neste enquadramento, os sobredotados distinguem-se por representações cognitivas mais complexas e ricas das situações (Shavina & Kholodnaja, 1996), pela escolha de processos cognitivos e de rotinas mais adequadas e pela flexibilidade em alterá-los quando não se adaptam à natureza do problema (Sternberg, 1986) e por uma maior monitorização do próprio desempenho (Almeida & Oliveira, 2000).
Na sua análise dos componentes deste processo, Sternberg (1985) distingue o analítico, o criativo e o prático. A inteligência analítica envolve os processos mentais que conduzem a um comportamento mais ou menos inteligente, definidos como processos elementares de informação classificados pela sua funcionalidade e generalidade e que incluem os metacomponentes que realizam a planificação de ordem superior, selecção de estratégias e monitorização; os componentes de realização que executam as estratégias seleccionadas; e, os componentes de aquisição do conhecimento que conduzem ao aumento de conhecimentos separando a informação relevante da não relevante quando se procura compreender um conceito (Sternberg, 1986).
Deste modo, alguns componentes são específicos, ou seja, necessários a um tipo de tarefa, enquanto que outros são gerais e necessários a quase todas as tarefas cognitivas, como os metacomponentes que estão sempre a operar para seleccionar estratégias e verificar o progresso, e que explicariam as correlações persistentes em todos os testes de inteligência, aptidões, desempenho. Decorre daí o facto de Woolfolk (2004) os referir como a "versão moderna do factor geral de Spearman". Esta parece constituir uma forma de alargar a contextualização do próprio conceito de inteligência, situando-a um nível mais abrangente e integrador, que vai para além da análise restrita e limitativa através da qual este conceito tem sido estudado há mais de um século.
Uma das grandes questões que na última década tem sido debatida pelos teóricos que procuram explorar a inteligência nas suas múltiplas dimensões e expressões é a da dicotomia entre inteligência académica e inteligência prática (Sternberg et al., 2000). O interesse destes estudos reside na constatação de que os problemas que resolvemos no nosso dia a dia têm apenas uma ténue relação com os conhecimentos e as competências adquiridas num contexto de educação formal ou com as capacidades exigidas em actividades académicas, isto pelas características que opõem um e outro tipo de informação. Enquanto que os problemas académicos são geralmente formulados pelos outros, bem definidos e completos na informação que fornecem; se caracterizam por terem uma solução correcta, obtida por um único método; e, estão longe da experiência quotidiana, tendo pouco interesse intrínseco.
Pelo contrário, os problemas práticos, tendem a não ser formulados ou a precisar de ser reformulados; falham na informação necessária para a sua resolução e não estão bem definidos; relacionam-se com a experiência do quotidiano e apresentam interesse intrínseco; caracterizam-se por ter múltiplas soluções, que embora apropriadas têm vantagens e desvantagens; e, ainda, por poderem ser resolvidos pela aplicação de diferentes métodos (Wagner & Sternberg, 1986; Sternberg et al., 2000). A inteligência prática parece estar mais correlacionada com o sucesso na vida adulta do que o QI e a inteligência académica, cujo melhor preditor é precisamente o QI obtido em testes de inteligência (Sternberg et al., 2000). A grande referência teórica sobre esta nova perspectiva surgiu nos anos 80 com estudos realizados em contextos variados, com diferentes tarefas e populações diversificadas, como os trabalhadores de uma fábrica de lacticínios (Scribner, 1984), pessoas que faziam compras em supermercados (Murtaugh, 1985),
apostadores de cavalos (Ceci & Licker, 1986) e os meninos das favelas do Recife (Carraher, Carraher & Schlieman, 1985), entre outros.
Esta abordagem abrangente permite, ainda, dar corpo aos dois novos conceitos da teoria dos três anéis de Renzulli (1986): a criatividade e o envolvimento na tarefa e clarificar a sua interacção com o conceito de inteligência geral, característico da definição de sobredotação.
Este prisma permite explicar de uma forma integrada a dimensão "complexidade cognitiva" que parece estar associada ao sucesso na vida adulta (Richardson, 1999) Até porque, de acordo com esta perspectiva, os estudantes sobredotados são mais capazes de fazer e expressar conexões com significado, ou seja, de interrelaciorem ideias e conceitos; de ser criativamente produtivos transformando o velho em novo; de imaginar e formar novas imagens; de criar analogias abstractas que lhes permitem transferir conhecimentos; de pensar em termos bissociativos e de pensar metaforicamente; de criar constelações de imagens; e, ainda, de implementar estratégias metacognitivas.
Passar da teoria à prática é sempre complicado, particularmente quando o quadro de referência teórico não é sólido. Contudo, os avanços que a Psicologia enquanto ciência fez num século de existência proporcionam-nos algumas "certezas", mesmo que tenhamos a consciência de que nunca encontraremos uma única teoria explicativa do que é ser-se humano (Bruner, 1990) e, ainda que, saibamos que é difícil encontrar uma linguagem comum que unifique as várias teorias (Youniss, 1997). À luz destas pequenas partes que sabemos serem parte de uma gestalt, podemos compreender melhor o que pode levar a escola a integrar nas suas finalidades a estimulação de talentos e um sentido mais prático que favoreça o sucesso na vida adulta.
Essa gestalt só poderá ser alcançada se procurarmos de uma forma sistémica avaliar de forma abrangente e dinâmica das múltiplas dimensões que confluem no desenvolvimento pessoal: motora, perceptiva, cognitiva, sócio-emocional, moral, comportamental e, exige também a integração desses dados num quadro de referência teórica eclético. Só com base numa avaliação integral das múltiplas facetas da sobredotação e do talento se poderá desenvolver em pleno o potencial que pretendemos que os jovens talentosos atinjam.
4. O que escola pode fazer para estimular talentos
Einstein, Newton, Pascal, Edison, Darwin, Russell, Churchill, Picasso, Kurasawa, Debussy, contam-se entre os inúmeros cientistas e artistas que não foram seguramente alunos brilhantes nos bancos da escola. As palavras de Einstein "a escola não faz sentido" ou as de Darwin "a escola como meio de educação foi, para mim, um zero" denotam que a escola não lhes conseguiu oferecer aquilo de que precisavam para saciar a sua imensa curiosidade e desenvolver os seus talentos. Isto é, dois milénios e
meio depois de Platão ter afirmado que a educação deveria ajudar os estudantes a encontrarem prazer na sua aprendizagem, esse prazer ainda não foi integrado nos objectivos da escola enquanto veículo por excelência da educação. Possivelmente porque o que estaria mais de acordo com a vontade da escola acaba por se tornar num "pesadelo" para os alunos, não estimulando verdadeiramente a oportunidade de aprendizagem e de valorização pessoal a que cada um tem direito (Almeida & Oliveira, 2000). Talvez porque a escola apele quase só à resolução de problemas académicos em detrimento da resolução dos problemas ligados à inteligência prática, de acordo com a distinção avançada por Sternberg e os seus colaboradores (2000).
E paira, ainda, a questão de que a escola reproduz e é reproduzida pelos padrões sociais vigentes (DeCharms & Moeler, 1962; Richardson, 1999) e, na maior parte das vezes, a(s) capacidade(s) e o(s) desempenho(s) desses padrões acabarem por sair da norma convencionada. Ou como refere Alencar (1986) porque a escola tem inibido severamente o potencial criativo comum a todos nós, exagerando excessivamente a reprodução do conhecimento e negligenciando a sua produção. Contudo, a questão reside em saber se é possível produzir sem reproduzir e em saber se todos podem mesmo ser produtivos, até porque, segundo os autores de inspiração kuhniana, as verdadeiras "revoluções" científicas, tecnológicas ou artísticas são (ou foram) raras.
A dificuldade em lidar com a diferença é também um dos factores que leva a escola a poder não estimular verdadeiramente talentos. Os três ingredientes fundamentais para se lidar com as diferenças patentes na sala de aula são conhecer os alunos, respeitá-los e ensiná-los (Woolfolk, 1998).
Conhecer os alunos, quer no plano individual, quer no plano cultural, implica para além de conhecer as suas experiências de vida; passar tempo com os alunos fora da sala de aula; e conhecer também modelos e teorias sobre a aprendizagem e o desenvolvimento de forma a interpretar os seus sinais à luz de enquadramentos de referência teóricos.
Respeitar os alunos como refere Zinc (2001) não é querer converter o outro à nossa imagem e semelhança, isto é, respeitar o outro é não impormo-nos a ele. Implica necessariamente ter respeito pelos pontos fortes dos nossos educandos, valorizar os esforços que fazem e ter consciência dos obstáculos que ultrapassam; aceitá-los incondicionalmente, estimulando genuinamente a confiança que têm em si próprios enquanto pessoas e não só no seu potencial talento. Dar-lhes a entender que as suas ideias, as suas produções, as suas escolhas merecem o nosso respeito.
Ensinar os alunos significa atender ao significado e à compreensão; alternar entre a aprendizagem de competências e tarefas complexas e inovadoras; proporcionar contextos de aprendizagem; influenciar atitudes e crenças bem como competências e conhecimento; e, evitar a redundância e a repetição.
Ensinar significa também diferenciar. A não diferenciação pode ser sinónimo de uma limitação sensorial séria: a cegueira, a surdez e a não sensibilidade para com uma realidade humana que, só por ser diferente, se nega ou se procura a todo o custo anular ou remediar, oferecendo algo que é desadequado ou mesmo visto como ofensa (Style, 1988). As diferenças individuais existem, não podem ser negadas e têm de constituir uma mais valia. Para diferenciar é preciso acreditar que todos podem aprender a ajudar-se a si
próprios (Howley, Howley e Pendarvis, 1995). Outra crença subjacente à diferenciação é a de que uma das finalidades da educação é o conhecimento de si, dos outros e, ainda, a clarificação do conhecido a par da iluminação do desconhecido.
Por isso, diferenciar é conhecer as diferentes características dos alunos e aquilo que cada aluno consegue fazer para que se possa adequar a tarefa proposta à competência de cada aluno, concebendo diferentes níveis de desempenho. A par destes cuidados, para ensinar de forma diferenciada é fundamental desenvolver o sentimento de auto-eficácia do aluno, valorizando os pequenos desempenhos porque a expectativa de sucesso numa dada tarefa determina a afirmação da capacidade, bem como a força da crença (Bandura, 1986).
Simultaneamente, diferenciar é sinónimo de valorizar o esforço mais do que as capacidades (o que não é característico da cultura ocidental, e.g. Holloway, 1988), incentivando a ideia de que o esforço conduz à perseverança e ao trabalho árduo e resiliente, pois a crença de que o esforço compensa predispõe professores e alunos para uma abordagem à aprendizagem profunda (Biggs, 1990).
Conhecer, respeitar e ensinar implica necessariamente gostar de ensinar, ter prazer em partilhar conhecimento e envolver todos no processo de aprendizagem (Hargreaves & Fullan, 1998). Implica, ainda, a existência de uma meta que se procura atingir, aprofundando e desafiando a aprendizagem não só dos alunos, como também a do próprio professor. E, acima de tudo, engrandecer e potenciar, ou seja, desenvolver o pleno potencial dos alunos, aproximando aquilo que conseguem fazer com ajuda daquilo que conseguem fazer como pessoas independentes (Vygotsky, 1991). Deste modo, a estimulação de talentos numa sala de aula só existe se as finalidades da educação forem bem clarificadas por forma a
"semear pomares de ideias" (Gopnik, 1991).
Nesta acepção, a escola deve promover e valorizar os raciocínios e os julgamentos independentes (VanDeur, 1996). Encorajar o raciocínio, a autoregulação e a autosuficiência; utilizar o conhecimento para resolver problemas, inferir relações, generalizar a novas situações, antecipar consequências; estudar grandes problemas, ideias e temas elaborada, complexa e aprofundadamente; integrar conhecimento de, com e através de diferentes sistemas de pensamento; reconceptualizar e gerar novo conhecimento,
seleccionar os recursos apropriados; reflectir sobre o conhecimento em mudança; promover a aprendizagem autoiniciada e autodireccionada; desenvolver a autocompreensão e o autoenriquecimento (Van Deur, idem) transformam-se em motes para uma escola que pretende estimular talentos.
Os termos enriquecer, aprofundar, desafiar, comunicar, reflectir, pensar, criticar, potenciar, facilitar, sentir, expressar, inovar, debater, abrir horizontes, esclarecer, envolver investir e jogar, assumem-se como apoiantes de uma perspectiva mais ecléctica das finalidades da educação de sobredotados e conduzem necessariamente à estimulação de talentos.
A intervenção com alunos com características de sobredotação, com elevado rendimento ou com dificuldades de aprendizagem deve, segundo Baum (1990) seguir quatro linhas, a saber: uma maior atenção ao desenvolvimento do talento, que passa pelo conhecimento que o educador tem sobre esta temática e pela tentativa de operar a um nível mais global, no sentido de um meio educativo enriquecedor; a criação de meios estimulantes onde o aprofundamento e o desafio do conhecimento tenham lugar de destaque e em que as diferenças individuais sejam valorizadas porque o sucesso na vida é reconhecido como não se restringindo exclusivamente à leitura e à escrita (Esgalhado, 2001); a implementação de estratégias de compensação que englobem as TIC, diferentes modalidades de comunicação, não só por palavras como também pela imagem e sessões em grupo; e, a tomada de consciência dos pontos fortes e fracos de cada aluno, com vista à autoconstrução, através da aprendizagem cooperativa e da orientação do adulto.
Se por um lado sabemos que uma capacidade excepcional e o interesse por um tema ou por vários são condições necessárias mas não suficientes para a realização da sobredotação, também sabemos que parte da chave pode residir no binómio "aprofundar + desafiar" (Bahia & Janeiro, 2001). Deste modo a escola não deve exigir rotinas, mas antes exigir o pensamento subjacente às rotinas, a reflexão e elaboração dos conceitos, a questionação e a discussão de problemas e de ideias sob cenários reais, a autonomia, a oportunidade de selecção e de produção de problemas significativos, a construção de elos e de relações entre elementos do problema, propiciando a procura e a produção de novas relações, e, ainda, o alargamento de horizontes, dando a conhecer novos prismas através dos quais os seus principais actores (alunos e professores) podem perspectivar o mundo que procuram conhecer.
Como explica a sabedoria oriental "se podes olhar, vê; se podes ver, repara". Por isso, os agentes educativos, nos múltiplos contextos da educação, devem procurar estimular a transformação do olhar a partir do aprofundamento e do desafio do conhecimento, reforçando quatro ideias fundamentais: a memória transforma a aprendizagem em conhecimento; a imagem enriquece o conhecimento; o desafio do conhecimento é motor da produção de novos conhecimentos; e, "o conhecimento por si só não basta, temos de o aplicar; querer não basta, temos de fazer" como referia Goethe.
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Sara Bahia
"in Crianças diferentes - Múltiplos olhares sobre como avaliar e intervir"
Coordenadora: Adelinda Araújo Candeias.
Edição: Universidade de Évora/PRODEP
Janeiro, 2006