"A partir de hoje é proibido brincar na minha escola".
Foi assim que tudo começou. Ao chegar junto dos pais, trazia a notícia de que, pelo facto de os colegas brigarem por causa de determinados brinquedos, os adultos proibiram as crianças de levarem brinquedos para a escola.
Tudo porque alguns pais manifestaram junto da instituição que algumas crianças faziam trocas de brinquedos entre si ou simplesmente os perdiam, brinquedos estes que, nalguns casos, não são de todo baratos, manifestando-se os pais desgostosos pelo dinheiro investido. Ou, ainda, pelo facto de os mais velhos, beneficiando do estatuto da idade, conseguirem ganhar indevidamente alguns destes brinquedos aos mais novos.
Todo o problema reside possivelmente aqui: se os pais compram aos filhos algo que não querem que possa desaparecer, talvez devam ser eles próprios a decidir em casa se permitem ou não que os filhos os levem para a escola, não depositando nesta a responsabilidade pelo brinquedo.
A escola, assoberbada com numerosos papéis e responsabilidades, adopta a solução mais fácil, proibindo a entrada dos brinquedos problemáticos.
Erro crasso. Quanto a mim, a escola falha nesta decisão. Sendo ela o local por excelência de socialização, troca, partilha, interacção, cooperação e negociação, é entre os seus pares que as crianças aprendem a ceder, a negociar, e é partilhando com os outros que a criança aprende a viver em sociedade.
Ficando o brinquedo em casa, o problema pode aparentemente ficar resolvido, mas retira-se às crianças a possibilidade de partilhar algo que é seu, de o mostrar, de fazer amigos com base num interesse comum, de introduzir brinquedos e brincadeiras diferentes das proporcionadas pela escola/jardim-de-infância.
Naturalmente, estes brinquedos podem também ser motivo de conflito, de birras, mas por isso mesmo são também uma oportunidade para negociar, dialogar, ser solidário, ser amigo e companheiro.
Imagine-se um jardim-de-infância onde existe uma caixa para os brinquedos trazidos de casa, local onde as crianças, ao chegar, colocam o brinquedo, para o retirarem somente no final do dia, para não haver discussões e brigas, não se valorizando o que a criança trouxe de casa, que lhe transmite segurança e que, de certo modo, a fará sentir-se feliz se for compartilhado pelo grupo de que faz parte, por mostrar ao outro o que é seu. È certo que existem outras possibilidades de brincadeiras na escola, mas proibir usar o que é de cada um é quase uma forma de decretar o fim das brincadeiras entre pares, é afirmar que é proibido brincar!
É em grupo que se constrói a noção de pertença. Quem não se lembra do jogo da carica ou dos berlindes, onde se negociava a troca e a partilha?
É necessário existir conflito para se encontrarem soluções. A escola/jardim-de-infância é um agente educativo e precisa de demonstrar aos pais que não é demitindo-se destes conflitos que ajuda as crianças a crescer num ambiente democrático e de aprendizagem de cidadania.
Deste modo, ao evitar os conflitos, estamos a impedi-las de crescer, de se tornarem capazes de resolver os seus problemas pelos seus meios, com os seus pares, por si próprias, utilizando a vontade própria, sendo livres dos seus actos. Até porque a liberdade é isso mesmo, no querer, na vontade! No desejo de querer escolher a forma de estar com o outro e atento ao outro.
Cabe ao adulto educador/professor proporcionar espaço de relação e de expressão, onde exista o intercâmbio de dar e receber.
Tudo o que se pode oferecer simplesmente desfrutando a vida entre pessoas.
Uma das competências do ser humano é a aptidão natural para estar em relação, uma espécie de estado de permuta em que cada um se define e se compara em relação com o outro. Este processo é inconsciente e automático, mas pode ser mais deliberado quando se reflecte sobre os sentidos implícitos dos relacionamentos. Uma questão ética, onde se deve desejar que a relação com os outros assente na liberdade e no respeito mútuo.
Citando Savater em
Ética para um Jovem: "Não quero prazeres que me permitam fugir da vida, mas prazeres que ma tornem mais intensamente agradável."
Felizmente, algumas destas crianças, como a deste relato, manifestaram em casa o seu desagrado, e em família abordaram-se as várias alternativas de diálogo para a resolução do problema. No dia seguinte, algumas dessas crianças confrontaram os seus colegas e professores sobre a referida proibição, manifestaram a sua opinião e reclamando os seus direitos. Foram ouvidos e delinearam-se estratégias: definiram-se espaços para brincar com esses brinquedos e quais as regras da sua utilização.
Educar é, fundamentalmente, aproveitar as forças individuais para as viver em partilha. Só deste modo estaremos a educar em plena harmonia e a dar à escola o seu verdadeiro papel de agente educativo.
Ilustração in O Urso Amarelo, Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, OMEP, Lisboa, 2006, também em versão inglesa com tradução de Danielle Bartram.
inCadernos de Educação de Infância nº 90 - Agosto 2010