Em 2006 foram encontradas a pedir nas ruas 260 crianças. Negligenciados pela família e muitas vezes ignorados pela sociedade, estes miúdos correm sérios riscos de se transformar em futuros delinquentes, alertaram especialistas ouvidos pela Lusa.
É sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto que está a maioria das 260 crianças sinalizadas pelas Comissões de Protecção de Menores e Jovens em Risco (CPMJR), de acordo com os dados mais recentes daquele organismo.
Na CPMJR de Lisboa Central, para onde é enviada grande parte dos que pedem na capital, há "fortes suspeitas" de que as mesmas crianças são utilizadas até à "exaustão" por vários grupos de pessoas.
A presidente daquela comissão, Teresa Espírito Santo, desconfia que muitos dos adultos que se servem dos mais novos não têm qualquer relação familiar entre eles e que Portugal poderá estar a ser usada como plataforma europeia destas redes de exploração infantil.
A lógica da mendicidade é simples: "Quanto mais tempo estão na rua a pedir, mais dinheiro conseguem obter", contou à agência Lusa Gonçalo Melo Breyner, procurador do Tribunal de Família e Menores de Lisboa.
"Elas são usadas num sistema de rotatividade e por isso desconfiamos que a sua família nada tem a ver com o colo onde estão", afirmou, por sua vez, Teresa Espírito Santo.
Também Melo Breyner admite a existência de um sistema destinado a garantir a "utilização máxima da criança". Ao frio ou ao calor, os mais pequenos cumprem um ritual diário: enquanto uns calcorreiam ruas, percorrem cafés, abordam clientes das esplanadas e semáforos, outros aguardam sentados no chão ou ao colo de quem vive deste modo de vida.
Este fenómeno, de acordo com a Comissão Nacional de Protecção de Menores e Jovens em Risco (CNPMJR), está frequentemente associado à imigração ilegal e revela um padrão de marginalização social. No processo de um menor pedinte são normais os relatos de má alimentação, inexistência de acompanhamento médico e abandono escolar.
Bebés de colo sem cuidados
A maioria dos bebés de colo usados nestes esquemas "nunca entrou num centro de saúde nem foi vacinado", lembrou Ângela Botelho, presidente da CPMJR de Loures.
"Vivem à margem do sistema de saúde, muitas vezes não andam suficientemente vestidos nem calçados e habitam em locais sem quaisquer condições", acrescentou a responsável de Loures. Carrinhas, contentores e apartamentos ocupados rotativamente por várias famílias são algumas das "habitações" descobertas pelas comissões de menores.
Recentemente, Teresa Espírito Santo apercebeu-se de que vários grupos davam a mesma morada como residência: um pequeno apartamento alugado em Loures. A escassez de camas foi o que mais chocou o responsável da comissão local que visitou a habitação, usada por várias famílias.
Com empregos precários, os adultos trabalham por turnos e, "em casa, as mesmas camas vão sendo usadas por vários consoante as possibilidades de trabalho" lembrou a presidente de CPMJR de Vila Franca, Olga Fonseca.
Enquanto os pais trabalham, "algumas crianças ficam em casa. Outras vão para a rua pedir".
A psicóloga Sofia Viana, da Junta de Freguesia de Santa Catarina, em Lisboa, que acompanha alguns casos problemáticos, explica que "quando as famílias abandonam os miúdos e não lhes asseguram as suas necessidades básicas, eles acabam por se revoltar e interiorizar que nunca ninguém se preocupou com elas".
Melo Breyner corrobora esta análise e acrescenta: "Às tantas é na rua que acabam por se sentir verdadeiros heróis quando integram grupos de jovens mais velhos e delinquentes. É preciso travar este processo, senão a sua conduta vai-se agravando".
As responsáveis das comissões de menores contactadas pela Lusa admitem que o acompanhamento destas crianças é muito difícil. Muitas vezes apenas porque não têm autorização da família.
Por outro lado, verificar se uma medida definida pelo tribunal ou comissão está a ser aplicada é tarefa quase impossível não só por falta de pessoal, mas também porque a maioria das famílias já tem interiorizado hábitos de fuga.
Prova disso é a inexistência de casos de mendicidade registados na Linha de Emergência Social do Instituto de Segurança Social. Todas as situações denunciadas nunca foram confirmadas, "muitas das vezes porque as crianças acabam por fugir", afirmou Helena Silveirinha, do Instituto de Segurança Social.
Em todo o caso, os dados mais recentes da CNPMJR revelam que em 2006 "foram sinalizadas 260 crianças em situação de perigo atribuível à prática de mendicidade".
Tráfico de crianças afastado
Para o secretário-executivo da CNPMJR, Ricardo Carvalho, as razões que levam estas crianças à mendicidade vão "desde a carência económica familiar até fenómenos mais complexos de criminalidade organizada ligada à exploração de crianças".
Sozinhas ou em pequenos grupos, elas são controladas à distância pelos mais velhos, que no final arrecadam o dinheiro conseguido. "As pessoas que dão fazem-no porque têm pena das crianças, mas o dinheiro nunca é para elas. Na verdade, esta atitude só está a alimentar esta rede de exploração infantil", alertou a presidente da comissão de Lisboa Central.
Ao ter sido alvo de "ameaças" e "súplicas exageradas" exigindo a devolução de um menor acolhido, aquela comissão começou a suspeitar de "algo muito mais grave", recordou Teresa Espírito Santo.
Na comissão, "há fortes suspeitas de que o país serve de plataforma giratória na rotação de crianças. Elas passam por aqui e seguem para outros países".
"Quando acolhemos uma criança a pressão é imensa e aparecem sempre outras pessoas, muitas vezes até de nacionalidade portuguesa", lembrou a responsável.
A desconfiança da presidente daquela comissão vai de encontro ao descrito no Relatório Sobre Tráfico de Pessoas 2007, elaborado nos Estados Unidos e divulgado este Verão: "Portugal é um dos países de destino e passagem de mulheres, homens e crianças traficadas do Brasil, Ucrânia, Moldávia, Rússia, Roménia e, com menor dimensão, de alguns países africanos".
O sub-director regional do SEF garante, contudo, não existir "qualquer indicação de que Portugal sirva como plataforma giratória para o tráfico de crianças", admitindo apenas o "real" e "difícil de contornar"