4
Kevin, que se instalara sensatamente junto do seu convidado, levanta-se de um salto, furioso:
— Estás a exagerar! Do país onde se fazem as bolas? Tretas! Julgas, se calhar, que na minha idade ainda acredito em contos como o da Branca de Neve e os sete anões? Que ainda acredito naqueles países extraordinários onde se diz que seres minúsculos fabricam os nossos objectos quotidianos? Obrigado, mas já passei a idade dessas tolices! Ando na escola e sei que os objectos são feitos em fábricas por máquinas e até por robôs… Não tentes baralhar-me!
— Mas eu não estou a tentar baralhar-te. Juro que estou a dizer a verdade: as bolas como esta são quase todas fabricadas no meu país, um país de verdade. Os bocados são unidos com um fio e uma agulha enorme por crianças da minha idade. No que me diz respeito, não os contei, mas devo ter cosido seguramente uns milhares.
— Ah, bem… Desculpa, é que não gosto que me tomem por um imbecil.
Kevin acalma-se. Senta-se e repete:
— Desculpa! Explica-me agora por que razão fugiste e, principalmente, como.
— Porquê, é fácil de explicar. Mas como foi, já te previno, não é nada fácil. Nem eu consegui ainda perceber!
— Se não percebeste, então quero ouvir o que tens a dizer-me. Conta.
— Foi certamente por influência da minha avó. Ela é extraordinária! É velha, velha, e conhece coisas que tu nem imaginas… Olha, estamos aqui os dois a conversar, como se falássemos a mesma língua!... tenho a certeza de que se deve a ela.
— Estranho, de facto… Mas fala-me da tua avó!
— Ela ficou cega mas, com as mãos, continua a fazer milagres. Cura as queimaduras, afasta o mal. As pessoas vêm vê-la de muito longe, pagam para falar com ela… Gosto de me sentar à beira da minha avó, embora ela às vezes me assuste. Costumava dizer:
— Sinto o infortúnio pairar sobre ti! Tem cuidado.
Um dia, acrescentou:
— Ouve, se alguém quiser fazer-te mal, pronuncia esta palavra, só esta palavra, e serás salvo.
Advertiu-me com um ar tão trágico que a palavra ficou logo gravada na minha memória.
— Serviste-te dela porque queriam matar-te? Foi isso, não foi? — diz Kevin de imediato, impressionado com a história.
— De certo modo… O dono da oficina onde cosemos as bolas batia-me cada vez mais.
— Porque é que te batia?
— Apercebi-me de que ele era um ladrão… Tinha emprestado dinheiro ao meu pai, e o meu trabalho seria para o ajudar a reembolsá-lo. Trabalhava até rebentar e o meu pai também, mas a dívida não diminuía. Havia um ardil por detrás, ele era um ladrão.
— O patife!
— Dizes bem. Da primeira vez que quis protestar, começou a dar-me murros… Uma noite, vinguei-me, inundei-lhe o stock, os caixotes prontos para partir para todos os países do mundo.
— Bem feito!
— Talvez, mas ele ficou louco. Agarrou num pau enorme e atirou-se a mim. Senti muito medo e escondi a cabeça entre os braços. Pensei logo na minha avó, porque ela sempre me defendeu. Sem mesmo reflectir, a palavra que me tinha ensinado veio-me aos lábios. Gritei-a…
— E então?
— E então, vi-me em tua casa, dentro desta bola, e não era nada agradável: davas-me grandes pontapés na cabeça, porque eu não saltava — concluiu Iqbal a rir.
— Pára com isso! Tiveste muita sorte, ele podia ter-te matado!... Que palavra extraordinária é essa?
— Não é extraordinária, até nem quer dizer nada, a minha avó inventou-a com toda a certeza: Shabatsé.
Iqbal já tinha pronunciado a palavra quando se apercebeu que não o devia ter feito. E Kevin repete:
— Shabatsé, é bonito, talvez que…
Não chega a terminar a frase. Torna-se de repente muito leve, começa a flutuar, a baloiçar. E grita:
— Iqbal!
Demasiado tarde. E logo a seguir ao seu amigo, Kevin é aspirado para o interior da bola.
5
— Onde estamos? O que se passou?
Kevin sente medo, tem vontade de chorar.
— Regressámos à minha oficina — responde Iqbal. — Que horror!
Estão sentados no chão de cimento de uma divisão sombria, húmida e suja. À volta deles amontoam-se peles. É o couro que serve para fabricar as bolas. Cheira mal.
— Shabatsé! Shabatsé! Shabatsé! — grita Kevin, desesperado.
— Não te canses! — advertiu Iqbal. — Já tentei, mas parece que a palavra perdeu todo o seu poder.
Kevin lança-se contra a porta… Está fechada à chave pelo lado de fora.
— O que é que nos vai acontecer? Não pedi para vir até cá! — gritou Kevin.
— Ninguém pediu para vir!
Não foi Iqbal quem respondeu. A pessoa que respondeu foi um rapaz ainda mais novo. Está de pé, ao lado de Kevin. Tem olhos grandes, muito tristes, mas sorri.
Não é o único a ter-se levantado e aproximado. Três, cinco, oito crianças mais, rodeiam Iqbal, o recém-chegado, e o seu misterioso companheiro.
— De onde saíram? — inquieta-se Kevin.
— Trabalham comigo.
— E vivem aqui? Dormem aqui? Como é que fazem? Há ratos, não?
— Habituamo-nos. Os ratos não fazem mal.
— É nojento. O vosso patrão merece ser preso.
Ninguém se dá ao trabalho de concordar.
— E agora, o que vamos fazer?
Kevin mudou de tom. Começou a perceber. Já não se inquieta apenas por si próprio, mas por todas as crianças que o acaso apanhou numa armadilha, naquele buraco pestilento.
Iqbal queria responder, mas não teve tempo: a chave gira na fechadura enferrujada da única porta. Em pânico, as crianças desaparecem. Voltam a deitar-se e fingem que estão a dormir. O próprio Iqbal foge também, mas regressa; não tem o direito de abandonar Kevin.
O homem que entra é enorme, um brutamontes. Os olhos são tão frios como balas de espingarda:
— Ah! Estás aqui! Sempre voltaste! Onde te meteste? Mas não perdes pela demora!
Está prestes a lançar-se sobre Iqbal, quando de repente se imobiliza: — E este, quem é?
Descobrira Kevin e compreendera que pertencia a um outro mundo.
— É meu amigo — murmura Iqbal.
— Teu amigo… Teu amigo…
O homem hesita. Hesita tanto mais que Kevin já não é o mesmo. Não só tinha deixado de tremer como é ele agora quem ataca:
— Devia ter vergonha! O meu professor falou-nos de pessoas como você, mas eu não acreditava! Vou contar-lhe tudo e havemos de escrever ao ministro, ao presidente da República, ao vosso chefe de Estado! Vai pagar caro!
O homem de olhos cruéis hesitou apenas um instante. Desata a rir.
— Estrangeiro imbecil! Não vais contar a tua história a ninguém. Não voltarás a sair daqui. Vou reduzir-te a picado e hás-de ser comido pelos ratos.
Com uma só mão, agarra Kevin pelos colarinhos, levanta-o como se fosse uma palha e encosta-o à parede. Levanta a outra mão, fecha o punho, ganha o impulso necessário... Vai cumprir a ameaça, mas pára no último instante.
Volta-se, sem largar Kevin: o seu instinto de animal selvagem advertiu-o de que havia perigo nas suas costas. Está cercado por um bando de crianças amotinadas, encurralado contra a parede.
Como seria de esperar, Iqbal e os companheiros encontram-se na primeira linha, mas os restantes vieram em socorro deles. São já trinta, quarenta, em filas cerradas, e cada vez chega mais gente. Empunham o seu instrumento de trabalho, uma temível agulha, tão afiada como um punhal. Mas mais inquietante ainda é o brilho dos seus olhos.
O homem nunca levará a melhor. Sabe-o bem, apesar da sua tacanhez. Pode varrer a primeira fila e, depois, a segunda. Como soldados prontos para o sacrifício, outros tomarão a vez. Mais cedo ou mais tarde será derrotado.
Para poder ver-se livre deles, prefere render-se.
Esquece Kevin, e levanta os braços.
6
As crianças não dão nenhuma hipótese ao seu carrasco.
Com a resistente corda que serve para coser as bolas, prendem-no de imediato e abandonam-no. Agora é cada um por si: todos se dispersam e fogem.
— Vamos ter com a minha avó. Só ela pode ajudar-te a regressar a casa — garante Iqbal a Kevin. Para deixarem aquela cidade gigantesca, têm de caminhar durante horas antes de chegarem aos primeiros campos, sulcados por uma rede de irrigação.
Algumas frágeis barracas de madeira aninham-se no cruzamento de dois caminhos perdidos.
— É ali — declara Iqbal.
Indica-lhe uma das casas.
Entram na divisão única, sem ninguém, já que naquela altura a família está a trabalhar no campo.
A avó de Iqbal está sentada bem longe da entrada, no meio de um amontoado de tapetes.
— Estava à vossa espera! — afirma. — Aproximem-se, para eu vos ver melhor.
Para poder ver melhor, tal como diz, acaricia o rosto das crianças com as suas velhas mãos cheias de suavidade.
— Meu Deus, estão exaustos! Dá-lhe de beber! Recebe o teu amigo como deve ser.
Sobre uma braseira acesa algures, a água ferve. Iqbal prepara o chá. Serve-o a Kevin com toda a cerimónia.
— Sabes, avó, o homem quis matar Kevin. É preciso castigá-lo. Vais…
— Chiu!
A avó põe um dedo nos lábios. Pede a Iqbal que se cale, antes de continuar:
— Kevin, meu filho… Chamas-te Kevin, não é verdade? Não estou enganada? Descansa primeiro, restabelece-te de tantas emoções. Em seguida, quando estiveres preparado, pronuncia esta palavra: Namasté e voltarás para o teu quarto.
Kevin não se apressa. Acaba o chá, bate na mão de Iqbal, prometendo que tentará vê-lo de novo, embora não saiba como, pronuncia a fórmula e desaparece.
7
— Kevin! Kevin!
Kevin senta-se na cama, acordado em sobressalto pelo pai. Dormira toda a manhã.
— Levanta-te. A bola espera-te lá fora. Já não tem nada, salta como um cabrito.
— Que bola?...
Com os cabelos despenteados e os olhos pesados de sono, Kevin tem o ar de quem veio de outro planeta.
— Sabes? A tua bola supostamente estragada… Tive tempo de ir à loja. Está impecável. Devemos ter sonhado… Mas o vendedor tranquilizou-me. Tem havido ultimamente muitos problemas, muitas coisas estranhas a acontecer com estes produtos fabricados não se sabe onde… Até me falou de um punching-ball que acabou de receber. Sabes, aqueles grandes sacos de couro com que os boxeurs se treinam. Sempre que alguém lhes dá um soco, tem-se a impressão de que o saco chora e geme! Como se alguém estivesse fechado lá dentro! É estranho, não é?
Jacques Vénuleth
Au pays d’Iqbal
Paris, Ed. Magnard, 2001