Sobre Crianças de rua definimos:
Crianças de rua:
Muito se tem escrito na tentativa de uma definição consensual do que é uma Criança de Rua. A diversidade e a dinâmica desta realidade social dificulta a sua categorização, ou seja, o seu reconhecimento, diferenciação e compreensão. Assim, discorreremos aqui algumas das definições propostas por vários autores.
Começaremos por aquela que é considerada a mais consensual, a da UNICEF:
"Street children are those for whom the street (in the widest sense of the word, i.e. unoccupied dwellings, wastelands, etc.) more than their family has become their real home, a situation in which there is no protection, supervision or direction from responsible adults."
A UNICEF distingue entre crianças na rua e crianças de rua:
- Crianças na rua: as que vivem com a sua família (que pode ter habitação ou viver na rua, em terrenos baldios, prédios abandonados, etc.) e passam muito do seu tempo a deambular ou a trabalhar na rua. Voltam para as suas famílias ao fim do dia;
- Crianças de rua, que podem ser divididas em duas categorias:
- o Sem tecto (o termo em inglês é "roofless") – crianças que vivem e trabalham na rua (em prédios abandonados, debaixo de pontes, estações de comboio ou metro, terminais de autocarros, parques públicos, etc.) mas mantém contactos ocasionais com as suas famílias. Encaram a rua como o seu lar e dedicam-se a actividades como mendigar, lavar carros, engraxar sapatos, venda de artigos baratos ou outras para a sua própria subsistência e a da sua família. Enviam frequentemente dinheiro às suas famílias.
- o Sem tecto e sem raízes (o termo em inglês é "roofless rootless") – crianças que vivem e trabalham na rua sem qualquer contacto ou vínculo familiar. Estas crianças fugiram para longe das suas famílias para escapar aos maus-tratos físicos e emocionais a que estavam sujeitas e encontram-se completamente desapoiadas.
Fonte:
UNESCO - Education for Street and Working Children in India. Nova Delhi: United Nations Education, Scientific and Cultural Organisation, 2001. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001263/126355eo.pdf
Em harmonia com a definição da UNICEF, "Peter Taçon (1985) propõe a distinção entre crianças na rua e crianças de rua. Segundo essa proposta, as crianças na rua são aquelas que utilizam a rua como espaço de trabalho e lazer, mas que mantêm laços familiares e que por isso muitas vezes passam seus dias na rua, mas retornam para casa à noite. As crianças de rua são aquelas que, por sua vez, romperam os laços familiares e que utilizam a rua como principal local de moradia. Apesar de se tratar de uma distinção ténue, pois o que se constata na prática quotidiana com essas crianças é que elas em geral deslocam-se entre essas duas situações extremas, essa parece ser a distinção mais comummente utilizada em quase todos os países do mundo e a que tem embasado muitos trabalhos de intervenção nessa área.
Para Stoecklin (2003), a denominação crianças em situação de rua permite transferir o foco do problema da criança para a situação em que ela se encontra, possibilitando que se abandonem antigas categorias que, segundo o autor, se limitam a considerar apenas dois aspectos da vida da criança que são o contacto com a família e o tempo passado na rua, ignorando importantes factores biográficos ou significativos para cada criança. Ainda acerca da denominação crianças em situação de rua, Rizzini e Butler (2003) afirmam que tal denominação reflecte mudanças na compreensão do fenómeno decorrente dos estudos brasileiros e internacionais dos anos 90 e permite enfatizar o carácter particular e efémero da situação em que a criança se encontra, tendo sido ampliado para outros contextos, com o uso das expressões: crianças em situação particularmente difíceis, criança em situação de risco ou de vulnerabilidade". (p. 88)
Fonte:
SANTANA, Juliana Prates - Cotidiano, expressões culturais e trajetórias de vida: Uma investigação participativa com crianças em situação de rua. Braga: Universidade do Minho, 2007. Disponível em: http://www.msmidia.com/ceprua/arquivos/julianatese.pdf
Lucas Neiva Silva e Sílvia Koller (2002) falam precisamente da dificuldade na definição de critérios para identificação de crianças de rua.
Começam por traçar uma cronologia em relação a esta realidade e aos termos empregues para sua denominação:
1. Em 1554 surge o primeiro relato sobre um menino de rua, numa novela autobiográfica de autor anónimo, intitulada La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, sobre um menino que andava pelas ruas de Espanha.
2. Durante a Revolução Francesa, outro menino de rua foi protagonista de um romance de Victor Hugo.
3. No século XIX, Charles Dickens escreveu o célebre romance Oliver Twist, publicado apenas em 1921, que relata a história de um menino de rua.
4. O termo "criança de rua" (street children) foi usado pela primeira vez em 1851, pelo escritor Henry Mayhew, na obra London Labour and the London Poor.
5. O uso geral deste termo deu-se apenas em 1979, definido como o Ano da Criança pelas Nações Unidas. Antes desta data, estas crianças eram conhecidas apenas como abandonadas, fugidas, sem lar, delinquentes.
Depois desta retrospectiva, estes dois autores apresentam cinco critérios de identificação de crianças de rua, avisando que não devem ser encarados de forma rígida e linear mas levando em conta a complexidade e particularidade de cada caso.
Os cinco aspectos principais a tomar em conta são:
1. a vinculação com a família
2. a actividade exercida
3. a aparência
4. o local onde se encontra a criança ou adolescente
5. a ausência de um adulto responsável junto à mesma.
1. Vinculação com a família
Analisando o envolvimento familiar, aparece a diferenciação entre dois vectores: a criança que mantém laços familiares apesar de longa permanência na rua e que retornam a casa à noite ou fins-de-semana (crianças na rua) e aquelas que romperam todos os laços familiares, sem serem obrigatoriamente órfãs (crianças de rua).
No entanto, é necessário compreender que estes são as duas situações extremas e que o ser humano não se desenvolve em saltos mas através de um processo contínuo, inclusivamente em relação à vinculação familiar. Neste contexto das crianças em situação de rua, dificilmente um individuo se encontra vinculado com a sua família num dia e no outro está na rua, sem qualquer ligação familiar. Em geral este processo ocorre de forma lenta e gradual. A transição do seio familiar para a rua enquanto lar e meio de subsistência pode levar semanas, meses ou mesmo anos.
2. Actividade
As crianças e adolescentes de rua executam dois tipos de actividades: as lícitas e as ílicitas. Entre as actividades consideradas lícitas está o acto de pedir esmola, o vaguear, brincar, dormir e trabalhar. Dentro da categoria do brincar podemos incluir a música, principalmente a que é composta e cantada pelos próprios meninos. Vão desde as canções infantis até àquelas que são marcadas por conteúdo de denúncia social, como no movimento hip-hop.
Em relação ao trabalho, acção laboral lícita com o objectivo final de obtenção de dinheiro, vestuário, alimento, bens, serviços ou privilégios, podemos apontar os vendedores ambulantes, os engraxadores, os arrumadores e limpadores de carros.
Classificadas como actividades ilícitas estão o roubo e as acções ligadas ao comércio de drogas, tais como a venda, compra, intermediação e transporte. A estas acrescenta-se a prostituição.
3. Aparência pessoal
Observa-se com frequência, sobretudo nas crianças mais novas, a ausência de calçado, uso de roupas descuidadas e com tamanhos inadequados ao corpo, assim como mãos, pés e rosto sujos, denotando pobreza e desleixo. A aparência de abandono pela visível falta de higiene e adequação no vestir denunciam a ausência de cuidado por parte de um adulto responsável.
Contudo, pode-se encontrar não só crianças mas sobretudo adolescentes de rua que não se ajustem nesta descrição. Os adolescentes em geral tendem a ter mais preocupação com a auto-imagem, podendo aparecer com roupas e calçado limpos, novos e até de marca. Isto é sobretudo observado em menores envolvidos em actividades ilícitas, mais lucrativas e que exigem melhor apresentação pessoal. Nestes casos, os adolescentes em situação de rua não se distinguem com aqueles de nível socioeconómico médio.
Por outro lado, uma criança que brinca na rua, que se apresenta por isso suja, e que aparentemente não está acompanhada de adulto responsável, pode ser tomada como criança de rua quando na realidade não o é. É preciso levar em conta a que distância a criança se encontra da sua casa e se tem em relativa proximidade familiares, vizinhos, comerciantes locais que tomam como referências de segurança. Uma criança pode simplesmente estar a brincar em frente à sua casa, sob supervisão discreta de um adulto cuidador.
Por vezes, há a tendência para caracterizar a criança pobre como estando em situação de rua, sendo importante ter o cuidado de ver além da aparência pessoal e averiguar outros factores como a actividade desenvolvida, o local em que se encontra e a presença de um adulto responsável.
4. Local
Para estas crianças, a rua não é apenas o local de circulação mas o lugar onde se vive. Deve-se encarar aqui o termo "rua" num sentido lato, incluindo todos os lugares públicos, desde avenidas, praças, parques, estacionamentos e jardins a estações de metro e comboio, centros comerciais e terminais de autocarros.
Sobretudo, a rua não deve ser compreendida apenas como um espaço físico concreto mas como o contexto onde são estabelecidas e desenvolvidas as principais relações de socialização da criança e adolescente que nela vivem.
5. Ausência de adulto responsável
A ausência de adulto identificado como cuidador ou responsável pela criança torna o menor de rua mais vulnerável frente aos riscos do seu meio.
Verificam-se situações em que as crianças de rua procuram a companhia de adultos na rua, que não são seus cuidadores, de quem possam conseguir ajuda. E há ainda aqueles adultos que se aproximam dos menores com pretensa aparência de cuidadores mas que na verdade são exploradores do trabalho infantil (incluindo a exploração sexual).
Acredita-se que a maioria das crianças e adolescentes em situação de rua esteja realmente desacompanhada de um adulto cuidador. Quanto maior a idade, maior a tendência para que isto ocorra. Contudo são muitos os casos em que os menores estão aparentemente sozinhos mas a ser observados à distância pelo adulto "responsável". Um exemplo disto ocorre por exemplo quando as crianças estão a pedir dinheiro nos semáforos e, ao longe, estão a ser vigiados por alguém que pode estar realmente a protegê-los ou que está simplesmente a explorá-los, sem se importar se sofrem algum mal mas apenas garantido que os menores lhes entregam o dinheiro que conseguirem juntar.
Pode até acontecer que estas crianças sejam abordadas pela polícia ou alguma equipa de rua de apoio a crianças e jovens e surge imediatamente o adulto a afirmar que estas crianças não estão desacompanhadas. Há casos em que o adulto que explora o trabalho destas crianças é o próprio pai (ou mãe), o que provoca um dilema na caracterização ou não destes menores como crianças "em situação de rua": tendo em conta o critério da ausência de vínculo familiar, estas crianças não se enquadram na definição embora se enquadrem perfeitamente nos restantes aspectos descritos (actividade desenvolvida, aparência, local).
De qualquer modo, com ou sem vinculação familiar, são crianças em risco, expostas aos perigos das ruas e exercendo funções não apropriadas para a sua fase do desenvolvimento. E o adulto que a acompanha, mesmo sendo pai, pode não estar qualificado como cuidador e sim como explorador.
Concluímos que os critérios de identificação de crianças e jovens em situação de rua devem ter em conta os cinco critérios acima citados mas, devido à enorme complexidade e diversificação desta população, nenhum destes factores pose ser tomado de forma absoluta ou isolado dos demais. Na análise de todo o contexto, é importante considerar os riscos aos quais as crianças estão expostas, assim como o quão vulneráveis elas estão frente a estes riscos.
Informação recolhida de:
NEIVA-SILVA, Lucas e KOLLER, Sílvia. A rua como contexto de desenvolvimento. Em E. R. Lordelo e tal. (orgs.), Infância brasileira e contextos de desenvolvimento (pp. 205-230). São Paulo: Casa do Psicólogo – Salvador: Ed. UFBA, 2002. Disponível em: http://www.msmidia.com/ceprua/artigos/lucas1.pdf
in InfoCEDI Maio 2009 nº 15