Após a separação(*) dos pais
A família
"A Família continua a ser a célula básica, o grande mediador cultural, a essencial matriz biológica e afectiva para o desenvolvimento harmonioso da criança e a realização do adulto"[1].
Contudo, a família de hoje já não é a do modelo, dito, tradicional. De facto, a família perdeu o seu cariz institucional, tendo em contrapartida sido reforçada a sua intimidade e o seu papel como factor de realização afectiva dos cônjuges e filhos e na socialização e aculturação destes.
É o que nos mostram as estatísticas[2] e a experiência de cada um de nós.
Alguns autores chegam mesmo a afirmar que a família ocidental de hoje é uma "família pacto"[3], onde o interesse do indivíduo se sobrepõe ao interesse do grupo.
Por isso a atenção que o Estado dedica à Família tem de ser cada vez maior, ou os valores sociais mais elementares podem perder-se para sempre.
Também a ONU quando proclamou 1994 "Ano Internacional da Família" [4] ao concluir que o processo de rápidas mudanças demográficas e sócio-económicas verificadas em todo o mundo influenciaram os padrões de formação da família e a vida familiar, estabeleceu como um dos objectivos "desenvolver as políticas e as leis que melhor apoiem a família, contribuam para a sua estabilidade e tenham em conta a sua pluralidade de formas".
A ambição do estado social moderno é de assegurar a estabilidade da família.
E nesse sentido, há que velar também para que o Direito, enquanto direito natural, e a sua aplicação reflicta a realidade social e assegure efectivamente os direitos de todos - ainda que para isso se tenha, por vezes, de romper com o status quo.
Temos hoje a responsabilidade de assegurar a existência saudável da família de amanhã.
As consequências do crescimento da divorcialidade e da coabitação enchem de incerteza o futuro da "Família".
Segundo o investigador francês Paul Martinot-Lagarde, 11% das crianças com idades dos 0 aos 3 anos, 15% dos 4 aos 7 anos, 17% dos 8 aos 11 anos e 21% dos 12 aos 15 não vivem com os dois pais biológicos[5].
De que forma, esta vivência, irá influenciar a maneira como as crianças de hoje, viverão amanhã as suas vidas de casal?
O interesse superior da criança
A Criança tem o seu papel social firmemente cimentado.
A Carta Europeia dos Direitos da Criança[6] e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança[7] obrigam os Estados signatários, podemos talvez dizer, a humanidade, a respeitar o menor como sujeito de um conjunto de direitos por forma a assegurar o seu normal, saudável e completo desenvolvimento, tanto ao nível físico como psíquico e intelectual.
Contudo a mutação da Família, o aumento do número dos divórcios, a diminuição do número de casamentos, a aparição das novas entidades familiares (as famílias monoparentais, biparentais, alargadas, reconstituídas, etc.), em suma, a realidade social da família de hoje, e principalmente quando a célula familiar se dissolve, enchem de interrogações o destino da criança, qual o seu lugar e qual o futuro da sua relação com os dois progenitores.
E todos sabemos quão importante é para o desenvolvimento harmonioso da criança, para o seu normal crescimento afectivo, que esta se possa identificar com os dois progenitores, nos seus comportamentos e nas relações que mantêm com cada um deles.
Daí que a citada Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989, no seu artigo 8.º § 3. determina:
"States Parties shall respect the right of the child who is separated from one or both parents to maintain personal relations and direct contact with both parents on a regular basis …"
e o Parlamento Europeu[8] ao reconhecer "que a protecção da criança deve ser orientada de acordo com o interesse superior da criança, com os princípios da liberdade e da dignidade da mesma" e atendendo a que "se verificam cada vez mais raptos de crianças perpetrados por um dos membros do casal" estabelece na Carta Europeia dos Direitos da Criança[9] que "em caso de separação de facto, separação judicial, divórcio dos pais ou anulação do casamento, a criança tem direito a manter contacto directo e permanente com os dois progenitores", e insta os Estados-membro a adoptarem rapidamente "as medidas oportunas para impedir o sequestro das crianças, a sua retenção ou não devolução ilegais", salientando que "os processos judiciais instituídos devem ser capazes de solucionar os litígios económica e rapidamente e ser de fácil aplicação em toda a Comunidade".
Também na Constituição da República Portuguesa o interesse do menor está consagrado como critério decisor[10], estando também expresso claramente no Código Civil (n.º 1 do art.º 1878.º e n.º 2 do art.º 1905.º) e na Organização Tutelar de Menores (art.º 180.º).
O n.º 2 do artigo 1905.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 84/95 de 31 de Agosto, determina que "na falta de acordo, o Tribunal decidirá de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com o progenitor a quem não seja confiado".
Esta, digamos, especificação de um dos itens que faz parte do interesse do menor demonstra a preocupação do legislador, na aplicação do princípio da efectividade dos direitos fundamentais, querer assegurar que determinados direitos, indispensáveis à realização do direito fundamental constitucionalmente garantido (n.º 3 do artigo 36.º da C.R.P.) à educação dos filhos, como, por exemplo, o direito de estabelecer relações com estes e de participar nas grandes opções relativamente à pessoas destes, fossem concretizados na grande proximidade dos filhos com o progenitor a quem não são confiados.
Na verdade, a relação directa entre o progenitor a quem os filhos não foram confiados e estes, constitui um direito fundamental daquele, uma vez que é uma concretização do art.º 36.º, n.º 6 da C.R.P., segundo o qual os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
Contudo, na nossa opinião, a vontade expressa do legislador carece de alguma concretização, como iremos expor mais adiante.
A separação dos pais
São cada vez mais frequentes, agora que os progenitores homens estão cada vez mais participativos e interessados em acompanhar o desenvolvimento das suas crianças desde a mais tenra idade, os litígios entre o pai e mãe que têm por objecto os filhos.
A função micro-social da criança e o significado afectivo que assume, parecem contribuir para este aumento de conflitos.
O exercício do poder paternal não é, já há muito, um direito de domínio do paterfamilias[11].
No direito romano, principalmente nas primeiras leis e na última República, quando a lei era escrita por Servius, a tutela dos menores, imposta por lei a todas as crianças romanas sui iuris (que não tivessem pater familias) ou impubes (de menor idade), era exercida para proteger o direito de propriedade[12]. Mas sente-se, particularmente no final da última República, que a tutela é cada vez mais exercida no interesse da criança[13].
A criança também já não é mais um instrumento de trabalho ou de provento económico para a família.
"Código de Seabra"
De facto, a ideia de criança está hoje firmemente ligada à ideia de amor e de protecção, pelo que, por vezes, os pais querem mesmo, após a separação, deter um monopólio afectivo sobre a criança, o que explica a existência de litígios entre estes acerca da atribuição da guarda dos filhos e em torno do exercício do direito de visita.
Apesar de estar consignado que aquilo que deve prevalecer, única e exclusivamente, é o interesse superior da criança, os adultos reivindicam, frequentemente, um "direito à criança", como se esta se tratasse de um objecto, não estando motivados, muitas vezes, pela protecção do interesse desta, mas apenas pela fonte de reconhecimento social que a guarda da criança simboliza[14] e contribuir, de alguma forma egocêntricamente, para a realização e satisfação pessoal dos progenitores.
É por isso legítima a preocupação do legislador em que a criança mantenha um contacto directo e permanente com os dois progenitores, e em particular a manutenção de uma relação de grande proximidade com aquele a quem não está confiado.
No nosso caso, em que o legislador deu uma nítida preferência à guarda única, em relação às outras formas de guarda dos menores após a separação dos pais, nomeadamente a guarda conjunta, só o contacto dos filhos com um dos progenitores está assegurado, já que o exercício do poder paternal incluí o direito, deste pai, de decidir sobre o lugar de residência dos menores[15].
Confiar os filhos a apenas um dos progenitores corresponde à concessão de uma "posição privilegiada" a esse progenitor, destruindo de forma particularmente dolorosa a igualdade entre os pais, "pois põe em causa direitos adquiridos"[16].
É certo que o progenitor a quem os filhos são confiados não exerce o poder paternal de modo totalmente exclusivo[17], porque deve respeitar o direito de visita do outro progenitor, e o seu exercício do poder paternal não pode ser exercido de modo totalmente discricionário, pois tem de contar com o exercício pelo outro progenitor de um direito de controlo ou de vigilância que lhe é reconhecido pela lei[18].
Contudo, estes direitos têm sobretudo um valor simbólico, significando que o progenitor não guardião não foi afastado da vida da criança nem inibido dos seus direitos. Estes direitos, de visita e de vigilância, têm ou pretendem ter, também, uma função prática, conferindo ao progenitor que não reside com a criança um papel, ainda que indirecto e limitado, na educação desta.
O direito de visita
O direito de visita dos pais é um direito natural[19], nascido do amor paterno e materno, que resulta da natureza - a relação biológica de geração - e é reconhecido pela lei[20].
Genericamente, o direito de visita consiste no direito de pessoas unidas entre si por laços familiares ou afectivos estabelecerem relações pessoais. No contexto em apreço o direito de visita significa o direito de o progenitor sem a guarda dos filhos se relacionar e conviver com estes, uma vez que tais relações não podem desenvolver-se de forma normal em virtude da falta de coabitação dos pais.
O direito de visita substitui, assim, o convívio diário entre este progenitor e os seus filhos, existente antes da separação.
Contudo, verificamos que este direito é permanentemente violado.
A recusa do direito de visita tem sido alvo de inúmeros estudos[21].
Tratando-se como é de um direito-função, é exercido não no interesse do progenitor detentor do direito, mas no dos filhos que têm o direito, que é também uma necessidade, de manter uma relação e um contacto directo e permanente com os dois progenitores[22].
A recusa da criança ao exercício deste direito, conforme concluem os vários estudos, se não é ditada directamente pela mãe ou pelo pai, tem, pelo menos, a sua origem na recusa, quer explícita quer inconsciente, do progenitor guardião.
É, antes de mais, uma forma de se proteger. A criança sabe que qualquer atitude diferente levá-la-ia a um clima de guerra e retaliação, na sua própria casa. A melhor forma de sobreviverem é refugiarem-se no silêncio ou repetir aquele discurso, tantas vezes proferido e que serve de escudo ao seu imenso sofrimento[23].
O motivo mais frequentemente apontado para impedir o exercício do direito de visita é o medo.
Invocado massivamente pelas mães, dizem ter medo que as suas crianças sejam alvo de violência perpetrada pelos pais, e também que sejam por eles sonegadas ou raptadas.
Por detrás destes medos, existe um outro inconsciente, e portanto duplamente forte, e que é o medo de ver o direito de visita do pai por um fim à sua relação com a criança - têm medo que o seu papel enquanto progenitoras fique diminuído. De facto, o convívio com o pai vem perturbar ou interferir na relação fusional mãe-criança, mas o interesse da criança deve sobrepor-se ao interesse egocêntrico do progenitor guardião.
Mães e Pais complementam-se no desenvolvimento psicológico dos seus filhos.
Os trabalhos de pesquisa[24] indicam que a maior parte das consequências negativas da separação e do divórcio podem ser minorados através da manutenção e do reforço de uma relação contínua e próxima com os dois progenitores.
A "contínua exposição a ambos os pais"[25] contribui para "um melhor ajuste ao divórcio"[26] e para uma "recuperação mais rápida do trauma emocional que possa ter resultado da separação dos seus pais"[27].
Constance R. Ahrons e Richard B. Miller num dos seus estudos publicados, em 1993, no American Journal of Orthopsychiatry, afirmam: "The continuing involvement of divorced fathers in families where mothers maintain physical custody has become recognized as an important mediating factor in the adjustment and well-being of children of divorce"[28].
Esta melhor adaptação conduz a uma "diminuição da interiorização dos problemas"[29] e consequentemente a uma menor ansiedade e melhor auto-estima[30].
Está, portanto, estabelecido que o direito de visita enquanto forma de, após a separação, os pais estabelecerem relações pessoais com os seus filhos, é imprescindível para o bem-estar e o normal e integrado desenvolvimento psico-social das crianças, em virtude de contribuir positivamente para a superação dos eventuais problemas internos que tenham sido provocados pela rotura familiar.
O direito de visita, sendo um direito dos pais[31], é também um direito das crianças.
É por isso que alguns autores falam de "vitimização" dos pais e das crianças[32], e justificam a utilização deste termo em virtude de serem forçados a concluir, porque os dados de que dispõem o indicam de forma clara, que as acções dos progenitores a quem os menores estão confiados, destinadas a impedir o direito de visita, são, quase sempre, esforços intencionais para atacar emocionalmente o outro pai.
Sustentam ainda, conjuntamente com outros autores[33], que o impedimento do regular convívio com o pai não detentor do poder paternal, tem por objectivo sabotar essa relação e fere emocionalmente pai e filhos, constituindo uma vitimização inaceitável.
De facto, as decisões judiciais não conseguem assegurar o direito do menor e do progenitor de manterem uma relação contínua e duradoura, porque os pais a quem os filhos estão confiados, devido, em parte, a serem detentores de uma autoridade absoluta sobre os menores[34], impedem o direito de visita, que se quer normal, regular e continuado.
A preocupação do Tribunal deve ser, também, a protecção do direito da criança a ter uma relação com os dois pais, e não pode permitir que essa preocupação seja considerada como um acto benévolo do progenitor a quem confiou o menor.
As decisões dos Tribunais são interdependentes[35], até porque as diferentes necessidades das crianças estão interligadas[36].
A justiça para as crianças consiste em muito mais do que direitos formais.
As leis têm de ser acompanhadas dos mecanismos e dos recursos necessários para tornar efectivos esses direitos formais.
A tradição, a jurisprudência já firmada, e os precedentes não justificam a manutenção de situações que não garantam a efectividade dos direitos da criança.
No que concerne às decisões judiciais relativas ao suporte económico - a prestação de alimentos, devido pelo progenitor a quem os filhos não estão confiados, o legislador, por estar perante um dever/direito[37], que põe em risco a subsistência do menor, penaliza o seu incumprimento[38].
Os estudos efectuados sobre a prestação de alimentos constatam que o aumento das penalidades legais têm contribuído para um maior cumprimento das responsabilidades económicas dos progenitores[39],[40].
O direito de visita enquanto meio de os pais, após a separação, estabelecerem relações pessoais com os seus filhos, é imprecindivel para o bem-estar e o normal e integrado desenvolvimento psico-social das crianças.
Há que assegurar que assim aconteça[41].
No sentido de proporcionar à criança um exercício pacífico e estável do direito de visita, permitindo-lhe um contacto fácil com o progenitor a quem não foi confiada, alguns autores propõem que aquela seja confiada ao pai que mostrar maior capacidade de cooperação com o outro quanto à fixação das condições do direito de visita.
Na jurisprudência americana esta tendência é muito forte e este critério está mesmo consagrado legalmente nos estatutos de alguns dos Estados, aliás como acontece presentemente no nosso Código Civil, após as introduções introduzidas no art.º 1905.º pela Lei 84/95, de 31 de Agosto[42].
No mesmo sentido, o Bürgerlichen Gesetzbuch (BGB) alemão, no § 1634, 1 prevê uma cláusula segundo a qual cada um dos pais se deva abster de tudo o que possa prejudicar a relação da criança com o outro progenitor [43]. O seu incumprimento pode ter como consequência uma revisão da decisão sobre a atríbuição da guarda (§ 1696, 1 BGB).
Similarmente, o nosso direito da família apresenta-nos como medidas a propositura de uma acção de alteração do regime do exercício do poder paternal, com base no art.º 182.º da O.T.M., n.º 1, 1.ª parte, ou uma medida de assistência educativa, mas só em caso de perigo para o menor, ou a suspensão da obrigação de alimentos e, ainda, a norma expressa na O.T.M., segundo a qual nos casos em que um dos progenitores não cumpra a decisão judicial ou o acordo que regula o exercício do poder paternal, o progenitor vítima do comportamento do outro tem a possibilidade de requerer ao tribunal as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até 50.000$00 e em indemnização a favor do menor ou do requerente ou de ambos...
Mas constatamos que estas medidas não são suficientes.
A morosidade da máquina judicial e, lamentamos dize-lo, a falta de acção efectiva por parte das magistraturas tornam um número demasiadamente elevado de crianças em "orfãos de pai".
Perante o crescente número de conflitos gerados em torno do direito de visita, se este direito não obtiver uma protecção eficaz, ficará reduzido praticamente a nada e servirá de muito pouco ao seu titular o ser-lhe ou não concedido, o que, conjuntamente com a convicção de impunidade que tal situação gera, constitui um sério desprestígio para a instituição e para o próprio ordenamento jurídico.
Como já vimos, toda esta situação põe em risco a criança.
É por isso necessário dar, explicitamente, ao direito de visita uma tutela penal.
Pretendemos, com uma medida desta natureza, que os pais a quem os filhos estão confiados menosprezem menos este direito das crianças.
Com a possibilidade expressa na Lei de punir quem viole, injustificadamente, o direito da criança em conviver e manter uma relação de grande proximidade com o progenitor a quem não está confiada, a magistratura tem à sua disposição um mecanismo, que para além de dissuador, é ele mesmo gerador de acção - acção por parte do progenitor a quem a criança está confiada que promoverá os convívios desta com o outro progenitor, acção por parte do progenitor a quem o menor não está confiado que pagará mais prontamente as prestações de alimentos e, acção por parte do sistema judicial que poderá penalizar quem incumpra dolosamente o regime de visitas que foi decidido judicialmente ou acordado entre ambos os progenitores.
A doutrina portuguesa tem entendido que a recusa do progenitor a quem o menor está confiado de entregar ao outro o filho, ainda que contra uma ordem judicial, não constitui um crime, embora seja um acto civilmente ilegal.
Atente-se que, apesar de estarmos perante uma violação de um direito fundamental, o direito dos filhos e dos pais à vida familiar e o direito destes à educação dos seus filhos, o direito constituído não o espelha convenientemente, deixando impune quem, com manifesta intenção dolosa de interferir ou impedir as visitas, o viola.
A jurisprudência francesa, por exemplo, já não partilha desta posição. O tribunal de "Cassation" decidiu que o art.º 357.º do código penal francês se aplica também ao direito de visita. É também na jurisprudência francesa que verificamos que a recusa da criança ao exercício do direito de visita, devido à forte probabilidade de esta ser gerada por influência do progenitor guardião, não é admitida como causa justificativa da responsabilidade penal em que o progenitor guardião incorre, se não permitir as visitas ao outro progenitor (crime da não representação da criança).
E em Espanha, a doutrina subsume esta conduta no crime de desobediência grave à autoridade, previsto e punido no art.º 237.º, 2.ª parte do código penal espanhol.
Entre nós, no plano do direito constituído, a violação do direito de visita não é, claramente subsumível nem no art.º 348.º (desobediência às autoridades), nem no art.º 249.º (subtracção de menores), ambos do C.P. de 1995.
Alguns autores, contudo, são a favor de uma tutela penal do direito de visita [44].
Outros perfilham da opinião de que já no Código Penal de 1982, a recusa do progenitor guardião em entregar a criança ao outro a fim de satisfazer o seu direito era subsumível ao art.º 196.º do C.P. (art.º 249.º do C.P. de 1995) [45],[46].
Apesar disso, tal subsumição não tem sido alvo de qualquer aplicação digna de nota, o que tem concorrido para a constante violação dos direitos da criança e dos direitos dos pais a quem estas não estão confiadas, e a inculcação de um profundo sentimento de impunidade nos outros progenitores.
Assim:
Considerando o direito da criança de manter contacto directo e permanente com os dois progenitores;
Considerando que esse direito é também uma concretização do interesse da criança;
Considerando o direito de ambos os pais à vida familiar e à educação e vigilância dos filhos;
Considerando o crescente número de conflitos gerados em torno do direito de visita;
Considerando que há uma necessidade premente em proteger este direito;
Considerando a vitimização emocional e económica dos filhos e dos pais, resultante do não exercício do direito de visita;
Tendo em conta que o aumento das penalidades legais têm contribuído para um maior cumprimento das responsabilidades económicas dos progenitores;
Tendo em conta que há uma relação directa entre o cumprimento do pagamento da obrigação de alimentos e o exercício efectivo do direito de visita;
Torna-se imprescindível dar expressamente ao direito de visita uma tutela penal, para o que será necessário alterar, pelo menos, a Organização Tutelar de Menores e o Código Penal.
Só assim estaremos a assegurar de forma efectiva o direito, o bem-estar e o interesse das nossas crianças, dos adultos de amanhã e da família do futuro.
(*) Separação de facto, separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade e a anulação do matrimónio.
[1] Armando Acácio Gomes Leandro, comunicação "Ajuda à decisão, ajuda aos pais, aos filhos e à justiça em caso de separação e divórcio", Junho de 1986.
[2] A Situação Social em Portugal, 1960-1995, Organização de António Barreto, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Abril de 1996; Eurostat (Yves-Thibault de Silguy e Pádraig Flynn), Les femmes et les hommes dans l’Union européenne, Portrait statistique, 1995; Mário Leston Bandeira, Demografia e Modernidade, Família e Transição Demográfica em Portugal, INCM, 1996.
[3] A Situação Demográfica na União Europeia - Relatório 1994, DGV-COM(94) 595, Comissão Europeia, pág. 63; Louis Roussel, professor honorário da Sorbonne, La Famille Source d’Avenir, Projet - Société Cherche Famille, revista trimestral, n.º 239, Outono de 1994, págs. 7 a 15.
[4] Assembleia-Geral das Nações Unidas, Resolução 44/82 de 9 de Dezembro de 1989.
[5] Pierre Martinot-Lagarle, Émergence et crise du marriage-contrat, Projet - Société Cherche Famille, revista trimestral, n.º 239, Outono de 1994, pág. 50; recenseamento francês de 1990 - 15% das crianças com menos de 18 anos vivem apenas com um dos pais biológicos, sendo que 1,1% com o pai, 8,7% com a mãe e 5,5% com a mãe ou com o pai inseridos numa nova família, dos quais 2,9% têm meios irmãos e irmãs.
[6] Carta Europeia dos Direitos da Criança, resolução A3-0172/92 do Parlamento Europeu (JO n.º C 241 de 21.9.92).
[7] United Nations General Assembly, Documento A/RES/44/25 de 12 de Dezembro de 1989; Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, publicada no Diário da República de 12/09/1990.
[8] Resolução A3-314/91 sobre os problemas da criança na Comunidade Europeia (JO n.º C13 de 20.01.92, pág. 536 e 537).
[9] Idem nota 6, § 8.13. da resolução.
[10] Vide Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor, Exercício do Poder Paternal Relativamente à Pessoa do Filho após o Divórcio ou a Separação Judicial de Pessoas e Bens, Universidade Católica Portuguesa - Editora, Porto, 1995, pág. 194 onde a autora "recorrendo ao art.º 36.º, n.º 6 da Constituição, que consagra o direito dos pais à educação dos filhos, sem distinguir entre família intacta e a família cindida pelo divórcio ou pela separação", conclui "que o sentido e a finalidade da lei sobre a regulamentação do exercício do poder paternal após o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens implicam que os pais disponham de um poder de concretização do interesse da criança"; o interesse da criança é unanimemente identificado, pelos especialistas das ciências sociais e humanas e também pela jurisprudência, com a estabilidade das condições de vida da criança, do seu ambiente físico e das relações afectivas, cfr. I. Thery, La Réferénce L’Intérêt de L’Enfant, du Divorce et des Enfants, Travaux et Documents, Cahier n.º 111, Presses Universitaires de France, 1985, pág. 59.
[11] Cfr. Jacques Commaille, Familles Sans Justice?, Le Centurion, 1982, pág. 136.
[12] Andrew Borkowski, Textbook on Roman Law, p. 128, - "Tutelage is, as Servius defines it, force and power and all owed by the civil law over a free person, for the protection of one who, on account of his age, is unable to protect himself of his own accord".
[13] A. Watson, Law Making in the Later Roman Republic, Oxford: Claredon Press, 1974; Luigi Mengoni, Affidamento del Minori nei Casi di Separazionne e dei Divorzio, JUS, 1-2, 1983.
[14] Rubellin-Dévichi, Jurisprudance Française en Matiére de Droit Civil, Autorité Parentale, Revue Trimestrielle de Droit Civil, ano 86.º, n.º 4, 1978, pág. 738.
[15] Veja-se, por exemplo, a definição do conceito de ‘custódia’ no Art.º 5.º alínea a) da Convenção de Haia sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças, de 25 de Outubro de 1980 - entrou em vigor em Portugal em 1-12-83, Decreto-Lei n.º 33/83 de 11 de Maio, aviso no Diário da República de 31-5-84.
[16] Idem Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor, ob. cit. nota 10, pág. 205.
[17] Cfr. Raymonde Legeais, L’Autorité Parentale, § 107.
[18] Direitos fundamentais, como já vimos, garantidos pela C.R.P. e expressos no C.C. e na O.T.M.
[19] Idem Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor, ob. cit. nota 10, pág. 220.
[20] Ainda que o não fosse, a sua existência não seria afectada pelo silêncio do legislador relativamente à consagração deste direito ou pela omissão do julgador na regulação judicial do seu exercício.
[21] D. H. Demo e Alan C. Acock, The Impact of Divorce on Children, Journal of Marriage and the Family, n.º 50, 1988; Robert E. Emery, Marriage, Divorce and Children’s Adjustment, 1988; E. Marvis Hetherington e outros, Divorced Fathers, Family Coordinator n.º 25, 1976; Marsha Kline e outros, The Long Shadow of Marital Conflict: A Model of Children’s Postdivorce Adjustment, Journal of Marriage and the Family, n.º 53, 1991; J. Kunz, The Effects of Divorce on Children, in Family Research: A review from 1900 to 1990, Stephen J. Bahr editores, 1992; Jeanne M. Tschann e outros, Family Process and Children’s Functioning During Divorce, Journal of Marriage and the Family, n.º 51, 1989; Judith S. Wallerstein, The Overburned Child: Some Long-Term Consequences of Divorce, Soc. Work n.º 30, 1985; Judith S. Wallerstein e Sandra Blakeslee, Second Chances: Men, Women and Children a Decade after Divorce, 1989.
[22] A importância da relação da criança com o progenitor a quem não está confiada está sobejamente documentada; ver também J. B. Kelly, Long-term Adjustment in Children of divorce: converging findings and implications for practice, Journal of Family Psychology, 2, págs. 119 a 140.
[23] Cfr. Maria Saldanha Pinto Ribeiro, As Crianças e o Divórcio, O Diário de Ana, Uma História para os Pais, Edições Universitárias Lusófonas, 1997, pág. 124.
[24] Para além dos estudos mencionados na nota 21 ver também: H.B. Biller, Paternal Deprivation, Lexington M.A., Lexington Books, 1974; N. Davidson, Life without father: American greatest social catastrophe, Policy Review n.º 51; R. Levy-Shiff, The Effects of father absence on young children in mother-headed families, Child Development, Vol. 53, n.º10, 1982; G. Russell, The father role and its relation to masculinity, femininity and androgyny, comunicação apresentada no simpósio: Research on Women and Men, Australian Psychological Society Annual Conference, Adelaide, Austrália, 1977; K. Zinsmeister, The Need for Fathers, IPA Review, Vol. 46, n.º 1, 1993; L. Bisnaire, P. Firestone e D. Rynard, Factors Associated with Academic Achievement in Children Following Parental Separation, American Journal of Orthopsychiatry, Vol. 60, n.º 1, Janeiro de 1990; Thomas S. Parish, Children’s Self Concepts: Are They Affected by Parental Divorce and Remarriage, Journal of Social Behaviour and Personality, Vol. 2, n.º 4, 1987; Neil Kalter, Universidade de Michigan, Long-Term Effects of Divorce on Children: A Developmental Vulnerability Model, American Journal of Orthopsychiatry, Vol. 57, n.º 4, Outubro de 1987.
[25] Mary Ann P Koch e Carol R. Lowery, Visitation and the Noncustodial Father, Journal of Divorce, Vol. 8, n.º 2, Inverno de 1984; ver também, Judith A. Seltzer, Relationships between Fathers and Children Who Live Apart: The Father’s Role after Separation, Universidade de Wisconsin-Madison, Journal of Marriage and the Family, Vol. 53, n.º 1, Fevereiro de 1991.
[26] Idem nota 25.
[27] Judith A. Seltzer, Nora Shaeffer e Hong-wen Charing, Universidade de Wisconsin, Family Ties after Divorce: The Relationship Between Visiting and Paying Support, Journal of Marriage and the Family, Vol. 51, n.º 4, Novembro 1989.
[28] Constance R. Ahrons e Richard B. Miller, The Effect of the Post Divorce Relationship on Paternal Involvement: A Longitudinal Analysis, American Journal of Orthopsychiatry, Vol. 63, n.º 3, Julho de 1993.
[29] Gene Brody e Rex Forehand, Universidade da Georgia, Interparental Conflict, Relationship with Noncustodial Father, and Adolescent Post-Divorced Adjustment, Journal of Applied Psychology, Vol. 11, n.º 2, Abril-Junho de 1990.
[30] Amanda Thomas e Rex Forehand, The Role of Paternal Variables in Divorced and Married Families, American Journal of Orthopsychiatry, Vol. 63, n.º 1, Janeiro de 1993.
[31] Veja-se o Art.º 1874.º do Código Civil que ao prever a existência de deveres mútuos traduz a realidade da relação de filiação, que não se estabelece somente no interesse dos filhos, mas também no dos pais - Diogo Leite de Campos, Lições de Direito da Família e das Sucessões, pág. 369, Almedina, Coimbra, 1990 ; e ainda, as disposições dos artigos 1882.º e 1887.º do C.C., que visam proporcionar ao menor não só o enquadramento mais feliz, mas também proteger os laços afectivos dos pais em relação aos filhos - Jorge Miranda, Sobre o Poder Paternal, Revista do Direito e Estudos Sociais, págs. 38 a 40, Janeiro-Dezembro, Ano XXXII, 1990.
[32] William N. Bender e Lynn Brannon, Victimizatin of Non-Custodial Parents, Grandparents, and Children as a Function of Sole Custody: Views of the Advocacy Groups and Research Support, Journal of Divorce & Remarriage, Vol. 21 (3/4), The Haworth Press, Inc., 1994, págs. 81 a 113.
[33] Idem ob. cit. nota 22 e J. Wallerstein e J. B. Kelly, Surviving The Breakup: How Children and Parents Cope with Divorce, Nova Iorque: Basic Books, 1980.
[34] Sobre este "poder/autoridade" veja-se Maria Saldanha Pinto Ribeiro, ob. cit. nota 23, pág. 141 - "na realidade quase tudo depende desse progenitor que ficou, diremos, com o controle da situação: este Pai que tem a guarda da criança, controla muitas vezes os sentimentos e os comportamentos do seu filho. Este Pai pode facilitar ou não o contacto, o desejo, a oportunidade da relação com o outro Pai".
[35] Jessica Pearson e Jean Anhalt, Examining the Connection Between Child Access and Chil Support, Family and Conciliation Court Review, Vol. 32, n.º 1, Janeiro 1997, Sage Publications, Inc., pág. 108.
[36] Malcolm Hill e Stewart Asquit, Justice for Children - A Story Without an Ending, in Justice for Children, editado por Stewart Asquit e Malcolm Hill, Martinus Nijhoff Publisher, pág. 144.
[37] Cfr. Art.º 1874.º, 1878.º e 1879.º do Código Civil.
[38] Cfr. Organização Tutelar de Menores - art.º 190.º (sujeição do devedor a processo criminal), e Código Penal de 1995 - art.º 250.º (violação da obrigação de alimentos).
[39] O facto de 73 % dos homens confirmarem um suporte financeiro regular das suas crianças indica um maior envolvimento financeiro dos pais sem a guarda e ter como razão a aplicação de penalidades legais - cfr. Mary Ann P Koch e Carol R. Lowery, ob. cit. nota 25, pág. 60.
[40] De facto, apesar de o art.º 181.º da O.T.M. se referir a qualquer inobservância do regime do exercício do poder paternal, o legislador sanciona de forma muito mais severa a não prestação de alimentos (vide nota 38), dotando o julgador de medidas executivas e coactivas bem definidas e que são utilizadas sempre que necessário. Já o mesmo não acontece com as medidas possíveis de serem usadas para se tornar efectivo o direito de visita.
[41] Conforme sustenta o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem inclui o direito de serem aplicadas medidas efectivas com vista a que os pais tenham contacto com os filhos, e a obrigação por parte das autoridades nacionais a tomarem tais medidas - Processos TEDH Eriksson v. Suécia, A n.º 156: 12 EHRR 183, § 71, Anderson v. Suécia, A n.º 226-A: 14 EHRR 615, § 91 e Reigado v. Portugal .
[42] Cfr. Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio, Almedina, 1997, pág. 42.
[43] A jurisprudência alemã chega mesmo a falar de uma obrigação do progenitor a quem o menor foi confiado em "utilizar, caso seja necessário, a sua autoridade para ultrapassar os caprichos das crianças" - cfr. Dieter Schwab, Handbuch des Scheidung Recht, Verlag Franz Vahlen München, 1987.
[44] Vide José Carlos Moutinho de Almeida, As Medidas Executivas dos Regimes Reguladores do Poder Paternal, Scientia Iuridica, Tomo XV, 1966, pág. 135-140.
[45] Segundo Maia Gonçalves (Código Penal Anotado, 1992), "a materialidade deste crime pode consistir em:
a) Subtrair um menor a quem tem o exercício do poder paternal,
b) Por meio de fraude, violência ou ameaça de grave mal determinar o menor à fuga a quem tem o exercício do poder paternal, e
c) Recusa da entrega do menor, a quem, pela lei, pode pedir a entrega".
[46] Há recusa de entrega sempre que o menor, temporária ou precariamente fora dos cuidados de quem de direito, não regressa ao seu poder de direcção e guarda por acção do agente sob cujo instável poder se encontra. A tónica criminosa, aqui, reside, pois, na retenção sem justa causa - cfr. Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, O Código Penal de 1982, vol. 3, 1986, pág. 43.º.