Um dos desafios postos para a educação infantil é a elaboração de projetos pedagógicos que contemplem a formação integral das crianças com as quais atuamos. Para contribuir nesse debate, proponho aqui uma reflexão sobre a educação da sensibilidade, o que implica colocar a criança no centro de todas as ações educativas, sendo em torno da sua realidade, da sua cultura e das suas necessidades que deve ser pensado as ações pedagógicas.
Ao enfatizar a criança no projeto educativo, parte-se de uma determinada compreensão sobre a infância, que não se reduz a um dado da natureza, mas sim como uma construção histórica e cultural. A criança deixa de ser vista como um dado universal, se constituindo como uma criação sóciocultural. Não existe infância, mas infâncias.
A infância como uma construção cultural foi, e é, influenciada por uma determinada leitura que se produziu sobre o tema. A teoria dos estágios do desenvolvimento cognitivo, de um lado, contribuiu para conhecermos as diferentes fases do conhecimento. Mas, por outro lado, veio reforçar uma concepção etapista, ou seja, colocou o desenvolvimento humano numa fôrma universal, como se qualquer criança, em qualquer lugar, passasse pelas diferentes etapas ao mesmo tempo e da mesma forma. Há uma tendência em vê-la vivendo um período no qual deveríamos intervir para fazê-la chegar a um outro posterior. Essa concepção traz o risco de compreendermos a criança sob o ângulo das etapas, não valorizando o momento real, concreto, no qual ela está situada.
Com isso, não enxergamos a criança como sujeito real, com demandas e necessidades próprias do seu tempo. É necessário questionar essa ideia da criança como um ser que já traz em si o futuro adulto, futuro esse que vai chegar a partir de uma continuidade de estágios já pré definidos e traçados.
Sugerimos aqui uma outra ideia a partir das reflexões de GOUVÊA (2003). Em seu texto, a autora nos fala da necessidade de considerarmos a infância como um acontecimento, ou seja, "como vivências descontínuas, que marcam rupturas, que não se sucedem, mas se confrontam". Sugere pensar a infância não como degraus de uma escada cujo ápice seria o adulto, mas como camada entre camadas, acontecimento entre acontecimentos, construção cultural entre construções.
Um exemplo é o engatinhar, quase sempre visto como uma preparação para o andar. Mas para a autora esse é um acontecimento em que a criança constrói um novo lugar no mundo, no qual, nas suas relações espaciais, se produz um determinado olhar e uma consciência dos espaços sociais.
Ver a infância como acontecimento é percebê-la construindo uma cultura própria, a cultura infantil, ou seja, é reconhecer a complexidade e as especificidades de suas manifestações. Picasso, o pintor espanhol, já afirmava: "Levei 20 anos para pintar como Rafael e toda uma vida para pintar como criança". Ele aponta a complexidade plástica da pintura infantil, que é uma das referências para a arte moderna. Reconhecer a cultura da criança é reconhecer que o infantil não é a mesma coisa do infantilizado. O que queremos sugerir é a necessidade de superar uma perspectiva etapista e infantilizadora da infância, apreendendo a criança como sujeito social, produtor e produto da cultura, que na singularidade da sua experiência, constrói uma cultura própria.
Mas qual seria a singularidade dessa cultura? O conhecimento existente sobre a infância nos mostra várias características da cultura infantil. Entre elas, podemos citar: a imitação como uma operação complexa, que é fundamental para a introjeção da realidade; a imaginação, que é o mecanismo básico de apreensão do mundo; a repetição, que permite à criança experimentar suas emoções e elaborar suas vivências ou mesmo o grupo de pares por meio do qual vai aprendendo a arte de viver coletivamente, entre outras características.
Nesse contexto, investir na educação das sensibilidades é um dos desafios para os educadores infantis. OSTROWER(1986) nos diz que todo ser humano nasce com um potencial de sensibilidade que precisa ser desenvolvido. Entendemos, assim, que a sensibilidade é a porta de entrada das sensações, ou seja, é através dos diferentes sentidos, como o tacto ou a visão, que estabelecemos relações com o mundo. Educar para a sensibilidade significa desenvolver a capacidade da criança de apreender o mundo que a rodeia. Para isso, um dos meios mais importantes é a arte. LIMA (2003) nos lembra que a arte tem uma relação íntima com o processo de conhecimento do ser humano, principalmente na infância, período de constituição da função simbólica.
A música, por exemplo, é uma das formas de expressão artística que mais une os indivíduos. A cantiga de ninar é algo comum a muitos seres humanos em várias culturas. Ser embalado é uma das primeiras experiências de movimento que a criança vivencia, e a cantiga contém ritmos que o indivíduo conhecerá e reconhecerá a vida toda. Um outro exemplo são as artes plásticas: pintar um quadro, desenhar ou esculpir funciona como elemento organizador do real, como forma de narrar o cotidiano e socializar essa narrativa com os outros indivíduos.
É necessário ressaltar as implicações diretas dessas considerações para a educação infantil. A arte deve ser vista como um recurso educativo para a construção do saber e, como tal, deve ser utilizada. Não deve ser reduzida a uma forma lúdica de preencher lacunas ou tempos vagos, numa perspectiva muito comum de instrumentalizar a arte. O fazer artístico na instituição educacional tem muito a contribuir para a constituição e o exercício de procedimentos cognitivos que estão ligados à construção do conhecimento. É uma situação de interação entre o indivíduo e o objeto de conhecimento culturalmente acumulado (LIMA,2003). Desta forma, a música, a dança ou a história da arte deveriam ser trabalhadas com as crianças desde cedo, constituindo um dos conteúdos do currículo. Acreditamos, assim, em um processo educativo que trabalhe a totalidade da criança, tendo na educação da sensibilidade uma das suas principais estratégias.
Para finalizar, é importante lembrar, com Nilton Fischer, que as propostas pedagógicas deveriam conter uma única frase: "toda criança deverá ser feliz na escola!" E o que faz uma criança feliz na escola é deixá-la brincar, desenhar, cantar, pintar, esculpir ou dançar. Acredito que deve ser essa uma das tarefas dos profissionais que actuam com a educação infantil.
Referências bibliográficas
GOUVÊA, Maria Cristina Soares. Infância: entre a anteriorida¬de e a alteridade. Belo Horizonte: UFMG, 2003 (mimeo)
LIMA, Elvira Souza. A criança pequena e suas linguagens. São Paulo: Sobradinho,2003 (Coleção Criança Pequena).
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Pe¬trópolis: Vozes,1986. 5ª edição
in
Cadernos de Educação de Infância nº82 Dez/07