A procura incessante de caminhos que maximizem a aquisição de conhecimento em contextos educativos
tem sido um processo que acompanhou o Homem ao longo da sua existência. As Dificuldades de
Aprendizagem de muitos alunos têm incentivado a investigação no sentido de dotar crianças com
Necessidades Educativas Especiais de instrumentos capazes de percorrer o mesmo caminho que as
outras, ainda que a uma velocidade diminuta. É neste sentido que falamos da Teoria das Inteligências
Múltiplas. Esta teoria tem subjacente várias Inteligências, as quais podem ser o caminho a desbravar por
investigadores, no sentido de não valorizar somente o Q.I., mas abrir outras perspectivas e ir mais longe
através das múltiplas inteligências do Ser Humano. Nesta perspectiva, parece-nos importante elaborar um
capítulo de revisão teórica acerca destas temáticas, que tenha implicações práticas ao nível das
Inteligências Múltiplas aplicadas a crianças com N.E.E. No presente capítulo a metodologia aplicada é o
estudo de caso, através de um relato narrativo baseado na observação e análise narrativa. A finalizar
apontamos algumas implicações para a aplicação da Teoria das Inteligências Múltiplas em contextos
educativos especialmente com alunos com Necessidades Educativas Especiais.
Estudo do caso de André
O estudo de caso do André parte da análise documental e narrativa de um caso de intervenção individual *
que foi desencadeado, por uma situação problemática, comum nas escolas que são os problemas
comportamentais dos alunos e as dificuldades de aprendizagem dos mesmos, acompanhadas de falta de
motivação. O André era um desses alunos que vivia em permanente situação de conflito com os
professores, com os colegas, com a escola e até consigo próprio. Este aluno de 15 anos, frequentava pela
segunda vez o 5º ano de escolaridade na Escola EB 2,3/S de Cunha Rivara, em Arraiolos. Lia e escrevia
com grande dificuldade e acompanhava-o um desinteresse e uma desmotivação face à escola. Procurava
incessantemente, de forma inadequada, chamar a atenção sobre si próprio e sobre o seu mal estar.
O André estava abrangido pelo Regime Educativo Especial, nomeadamente, art. 2º alíneas f) Condições
Especiais de Avaliação; g) Adequação na Organização de Classes ou Turmas e i) Ensino Especial, art.11
alínea a) Currículo Alternativo, cujo principal objectivo era mantê-lo na escola para que adquirisse
conhecimentos básicos para a sua vida prática: como ler, escrever, resolver algumas operações e
problemas do seu quotidiano. O aluno tinha vergonha das suas dificuldades e falava frequentemente disso
nas aulas de apoio. Lia silabicamente em contexto de sala de apoio, com um ensino individualizado.
Todavia, recusava-se a ler e a escrever na sala, em contexto de turma afirmando, eu sou o maior de todos,
não sei ler e eles gozam comigo.
Após sucessivas aulas de apoio, o André demonstrou um grande interesse e um conhecimento vasto na
área das Ciências nomeadamente no estudo das aves. Conhecia todo o tipo de pássaros, as suas
características e habitats. Quando fazia pesquisas sobre aves, lia com menor dificuldade e com um
interesse desmesurável. Então a professora de apoio (Profª. M. Rebocho) abandonou métodos analíticos
sintéticos e métodos globais. A professora começa a escrever textos sobre aves, ditados pelo aluno que,
posteriormente, ele lia e ilustrava (também desenhava muito bem todo o tipo de aves com os mais diversos
pormenores). Através desta estratégia o André lia e não se aborrecia, mas os problemas de
comportamento e a dificuldade de integração na turma mantinham-se.
Foi nessa altura que se decidiu incluir este aluno num projecto de computadores com um professor de
Biologia, onde faziam pesquisas e exploravam enciclopédias sobre animais, sobretudo as aves. Os
professores de Educação Visual e Tecnológica continuavam preocupados com o comportamento deste
aluno.
Numa conversa com a professora de apoio o aluno refere que criava algumas espécies de pássaros.
Depois desta informação, os interesses do André começam a estar claros para os professores que o
acompanhavam. Entretanto já se tinham passado......meses. A equipa docente começa a esboçar aqui a
ideia de um projecto, que desde essa altura mobilizou com muita intensidade a motivação do aluno. A
construção de um viveiro de pássaros estava no horizonte. Fizeram-se pesquisas sobre viveiros, espaços
necessárias, materiais necessários, métodos de construção e conservação. Depois de algumas visitas a
viveiros de pássaros na localidade e ao viveiro do próprio André, partiu-se para a acção um projecto
intitulado "Um Viveiro na Escola". Um dos locais possíveis para a construção do viveiro era um recinto
abandonado da escola.
Decorridos dois meses, em Novembro de 1999, foi delineado o projecto que tinha como finalidades:
- Motivar o aluno para a escola, partindo dos seus interesses e dos seus pontos fortes.
- Criar condições para que o aluno desenvolvesse competências necessárias para a sua vida prática (ler,
escrever...).
-Promover a auto estima do aluno.
-Promover a autoconfiança do aluno para a aprendizagem.
-Melhorar o rendimento escolar do aluno.
-Envolver os restantes alunos da turma na elaboração de um trabalho conjunto.
-Aproximar o André dos seus colegas promovendo a sua integração na turma.
-Promover o respeito dos alunos da turma pelo André e pelos seus problemas.
-Promover o trabalho conjunto de professores, no sentido de responder às solicitações próprias de um
aluno com Necessidades Educativas Especiais.
-Sensibilizar a Comunidade Educativa para diferentes formas de aprender.
-Integrar adequadamente os diversos recursos disponíveis numa acção de parceria flexível.
- Privilegiar a resposta especializada e diferenciada aos alunos.
-Incentivar a permanência do aluno na escola.
Após a formulação de objectivos registámos:
- os recursos existentes:
-Humanos (professores de apoio educativo, professores de E.V.T., Professor de Biologia, o André e a
própria turma).
- os recursos necessários:
- Espaço para a construção do viveiro.
- Material de construção.
- Mão-de-obra.
- Recursos financeiros.
Após a construção do projecto, este foi apresentado ao Órgão de Gestão, que o julgou demasiado
ambicioso. Todavia, não se desistiu desta ideia, foram elaborados jornais, onde o André recolhia imagens e
textos sobre aves e os colegas da sua turma os organizavam e vendiam. Os professores de E.V.T.
construíram com o André e os restantes alunos da turma os ninhos para o suposto viveiro. Fizeram-se
rifas, que foram vendidas por todos os alunos da turma. Depois de angariado algum dinheiro voltou-se a
insistir com o Órgão de Gestão que aprovou o projecto. O André vendeu os pássaros para o viveiro, teve
que fazer determinadas operações e a motivação crescia de dia para dia.
O aluno queria um viveiro de grandes dimensões, que ocupasse a totalidade do canteiro, contudo, por
questões estéticas, considerou-se que seria melhor a construção de dois viveiros mais pequenos (um em
cada canteiro). A planta, as várias modelações tridimensionais do viveiro, bem como as fotografias do
mesmo na actualidade seguem em anexo. O aluno envolveu-se em todas as actividades, inclusivamente
fez o acompanhamento da obra junto dos pedreiros e a expressão da sua motivação e auto-estima positiva
puderam ser testemunhados por todos. Começou a ganhar protagonismo na turma, sentindo-se à vontade
para ler e escrever. Continuou na escola e começou a trocar correspondência com uma aluna de uma
escola diferente.
Em suma, conseguiu-se mudar o percurso escolar sinuoso deste aluno, marcado pelas dificuldades e
rejeições, partindo dos seus interesses e pontos fortes, mudando o enfoque das dificuldades para as
potencialidades e os interesses. Promovendo o desenvolvimento e a concretização das potencialidades o
André conseguiu mobilizar motivação para se comprometer na aprendizagem de conteúdos difíceis e para
aos poucos perceber a sua utilidade, ou seja a leitura e a escrita.
Recentemente, há cerca de um ano, o André foi à escola visitar os viveiros, entrou, observou e exclamou:
às vezes estas ideias resultam!Actualmente, o André tem 20 anos e cumpre o Serviço Militar.
* Agradecemos a disponibilização de dados por parte da Escola EB 2,3 / S Cunha Rivara Arraiolos Portugal, para este estudo,
e em particular à professora Mónica Rebocho (professora de apoio que acompanhou o caso). O nome André é um nome
fictício.